Centenas de baleias jubartes se reúnem todos os anos, nos meses do verão austral, em frente à Ilha Carlos III, no Estreito de Magalhães, extremo sul da Patagônia chilena. Seu único objetivo: empanturrar-se com toneladas de sardinhas e anchovas
Texto e fotos: Jaime Borquez e Luis Pellegrini, da Ilha Carlos III, Chile
No extremo sul do continente americano, na parte oeste do Estreito de Magalhães, em território chileno, uma equipe de cientistas descobriu há cerca de oito anos um lugar onde centenas de baleias jubartes voltam a cada ano para se alimentar. No verão austral, entre os meses de novembro e abril, esse imenso restaurante para baleias fica repleto de cardumes de sardinhas e anchovas. São esses bilhões de peixinhos que atraem os grandes cetáceos. Eles vêm de muito longe, do litoral da Colômbia, sua área de reprodução, só para comer. Quando as águas começam a esfriar e as sardinhas desaparecem, fazem novamente o caminho de volta, percorrendo os labirintos do canal até chegarem ao Oceano Pacífico. Em mar aberto, tomam o rumo do norte, em direção às águas tropicais da Colômbia, para mais uma estação de amores e para ter suas crias e amamentá-las.
As jubartes fizeram essa peregrinação durante milênios, tranquilas e sem serem incomodadas, até que, entre os séculos 19 e 20, o pior dos seus inimigos começou a dizimá-las. Estações baleeiras instalaram-se nas margens do estreito com o único objetivo de caçar as baleias para delas extrair sua gordura e sua carne. Foi um desastre que, na época, levou à extinção dos exemplares que frequentavam a região. Até hoje, nas áreas onde existiam essas estações, aparecem ossadas inteiras de baleias que foram mortas. Esse inferno acabou em meados da década de 1960, por uma única razão: acabaram-se as baleias. Com o fim da presença delas nas águas de Magalhães, foram fechadas também as estações de caça.
Até que, há pouco, no início do século 21, elas começaram a voltar ao mesmo lugar, e com o mesmo propósito: saciar a fome com toneladas de sardinhas ingeridas inteirinhas e al dente. Até hoje não se sabe exatamente como isso aconteceu, já que a zona onde elas se reúnem, hoje transformada pelo
Chile em parque marinho, fica dezenas de quilômetros distante do Oceano Pacífico. Para chegar lá é preciso atravessar um verdadeiro labirinto de canais.
Teria sobrevivido alguma baleia, remanescente dos tempos de pesca predatória, que tivesse guardado em sua memória o “mapa” que leva ao grande refeitório coalhado de sardinhas? Teriam as baleias, indivíduos especializados em prospectar os litorais em busca de novas fontes de alimentação para toda a comunidade, redescoberto o piscinão? Nada se sabe ao certo. O fato é que elas voltaram ao mesmo local, e a cada ano são mais numerosas. Chegam hoje aos 400 indivíduos, entre filhotes, jovens e adultos.
O parque das baleias está localizado a sudeste da Ilha Carlos III e ocupa boa parte dos 67 mil hectares de terra e água que formam a Área Costeira Marinha Protegida. Trata-se da primeira zona marinha estabelecida como área protegida e parque marinho no Chile.
Tamanha quantidade de baleias confinadas num espaço relativamente tão pequeno logo fez despertar a ideia de explorar comercialmente a presença dos cetáceos. Desta vez, porém, sem nenhum morticínio à vista. Os arpões dos caçadores se transformaram em câmeras fotográficas e filmadoras, os barcos baleeiros viraram lanchas para safáris de imagens e o mundo do turismo começa a baixar naquele território
em busca de um espetáculo realmente único, tanto em termos de beleza visual quanto de emoções à flor da pele.
Com sede em Punta Arenas, uma empresa de ecoturismo e pesquisa científica, a Whalesound, oferece a observação das baleias do parque marinho Francisco Coloane de modo privilegiado. A viagem de barco dura quatro dias, a partir de Punta Arenas, e o primeiro trecho de navegação desce o canal até o Farol de San Isidro. Ele foi inteiramente restaurado pela Whalesound e está aberto à visitação. Ao lado do farol, a aconchegante Hosteria San Isidro, na beira do Estreito de Magalhães, acolhe os viajantes para uma boa tarde de descanso e paz.
O cenário é simplesmente inesquecível. Muito perto da praia, diante da pousada, costumam brincar toninhas, pinguins e lobos-marinhos – todos eles abundantes na região. Pode-se fazer caminhadas curtas em meio ao silêncio e à solidão da Patagônia. Uma excelente gastronomia, na qual não podem faltar os famosos vinhos chilenos, uma lareira acesa com lenha de carvalho e o interminável entardecer do verão nessas latitudes entra pelas janelas da hosteria, onde comodíssimos sofás quase obrigam à contemplação.
Na manhã seguinte, depois de uma noite bem dormida, a viagem continua pelo estreito. Grande atração a seguir: o Cabo Froward, o extremo continental das Américas. Depois dele, mais ao sul, só existem ilhas. Se os ventos forem favoráveis e o mar estiver tranquilo, em sete horas chega-se ao Ecologde da Ilha Carlos III. Esse ecoacampamento é formado por domos de lona plástica, semelhantes na forma aos iglus dos esquimós. Para produzir o menor impacto possível no ecossistema praticamente virgem do lugar, os domos foram construídos sobre pilotis e se intercomunicam por passarelas de madeira. Não há luz elétrica, não há sinal de celular nem outros confortos da vida moderna.
Os domos, contudo, têm calefação a gás, embora ela deva ser desligada durante a noite, por motivos de segurança. Mas não se passa frio no interior deles. O gerador é ligado ao escurecer e desligado logo após os passageiros se acomodarem dentro de enormes sacos de dormir, muito espessos, com uma camada de uns cinco centímetros de plumas de ganso lá dentro. Tem-se a agradável sensação de dormir sob as asas de uma imensa galinha choca. Perfeito. O duro é apenas quando alguém precisa ir ao banheiro, lá fora, e tem de sair do iglu…
No Ecolodge é preciso destacar a impecável gastronomia, na qual não faltam as centollas, ou king crabs, aqueles enormes caranguejos típicos dos gelados mares patagônicos. Do restaurante, uma grande barraca de lona plástica, misto de ponto de encontro e área social para um cafezinho, uma bebida e bate-papos, desfruta-se uma vista esplêndida do canal.
Ao raiar do dia, depois de um substancioso café da manhã, sobe-se na lancha Esturión para se aventurar na observação das baleias. Elas estão em toda parte – são dezenas, centenas. Esguicham jatos de água ao respirar, nadam perto do barco, e o show máximo acontece quando alguma decide saltar e cair de lado, espirrando água para todo canto. Ao redor delas há sempre bandos de oportunistas, focas, leões-marinhos, pinguins, todos à espreita das pobres sardinhas que, apavoradas com a presença das baleias, pulam no ar e caem direto na boca desses aproveitadores.
As jubartes costumam se deslocar em grupos de três ou mais exemplares. É comum ver a mamãe baleia ensinando o seu bebê (de uns quatro metros de comprimento) a abocanhar cardumes inteiros de anchovas e sardinhas. Não dá para negar: a emoção de estar a poucos metros desses imensos mamíferos marinhos é enorme. Eles já se habituaram à presença humana, não apenas aos atônitos passageiros da lancha, mas também aos ousados aventureiros que preferem navegar de caiaque, no meio das baleias, sobre aquelas águas geladas. O mais espantoso é que os animais parecem ter noção da fragilidade dos caiaques e nadam com muito cuidado entre eles. Não se tem notícia de acidentes ou de capotagem por movimento brusco das baleias.
As viagens no Esturión são acompanhadas pelo biólogo marinho chileno Juan Capella, que há 12 anos estuda o comportamento das jubartes tanto no Estreito de Magalhães quanto no litoral da Colômbia. Como as baleias que pesquisa, ele passa a vida nesse ir e vir, seis meses em cada região. Dedicado ao extremo, o biólogo surpreende pela paixão que nutre por esses bichos e pelo conhecimento que tem deles.
Capella olha pelo binóculo e exclama: “Lá está a Nevada, uma fêmea de 4 anos!” Uma gigantesca cauda aparece, faz uma espécie de abano e submerge lentamente nas águas do estreito. Estará inventando? De jeito nenhum. Juan abre um álbum e mostra as fotos que tirou da cauda da Nevada, com toda a descrição dos desenhos que existem nela. Cada cauda funciona como uma impressão digital: é única. É exatamente isso que permite aos biólogos identificar com precisão cada baleia jubarte, individualmente.
No parque, as atrações não se limitam às baleias. Além das muitas possibilidades de caminhadas pela ilha, existe a visita ao Glaciar Santa Inês, sem falar nos passeios de caiaque para os mais arrojados. É importante ressaltar também que a Whalesound, pelo caráter científico das suas ações, optou por viagens de grupos pequenos, de dez pessoas. Isso permite um maior convívio entre os viajantes e a certeza de que se poderá ver baleias sem ter de se acotovelar ou lutar por um espaço no navio.
Info: www.whalesound.com
Originally posted 2010-10-02 23:11:46.
E você ficou sabendo desse roteiro através aqui do meu blog, ou por outras fontes, Adilson? Abs
Fantástico. Fiz essa viagem em janeiro de 2011. Pretendo voltar um dia.