Somos o que comemos

Bósforo, 1829, óleo do pintor russo Maxim Vorobiev, retrata com perfeição a luminosidade que se reflete sobre as águas do Canal do Bósforo, na Turquia, e confere a elas uma incrível cor dourada

Adoro comer, não vou negar. Considero a gastronomia uma arte nobre, e creio que o simples fato de podermos todos os dias desfrutar do prazer da comida é uma prova da bondade de Deus. Que fazer, se sou como os peixes que se deixam fisgar pela boca? Um amigo pouco respeitoso chegou até a sugerir que provavelmente nunca saí da fase oral, mas não dei a mínima. Se ele é faquir e gosta de jejum, o problema é dele. Os quilinhos a mais que tenho de carregar? Paciência. Tudo na vida tem seu preço. E minha avó Anna, uma italiana sábia e gulosa, amante da polenta, dos queijos e dos bons vinhos, sempre me ensinou que “mais vale um gosto que dez vinténs no bolso”. Sigo à risca o seu conselho. E que minha cardiologista, a doutora Berta, não leia nada do que estou dizendo. Não quero que me passe mais um sabão.

 Por Luis Pellegrini

Descobri cedo que comer é um prazer, além de atividade necessária à subsistência. Mas levei muito tempo para perceber que pode ser também uma forma de meditação, uma poderosa ioga capaz de nos integrar e harmonizar com o Todo do qual fazemos parte. Entendi isso num dia luminoso, na Turquia, às margens do Bósforo, o canal que interliga o Mar de Mármara e o Mar Negro e separa o continente europeu do asiático. Caía a tarde quando decidi almoçar num vilarejo de pescadores à beira do canal. Escolhi um restaurante modesto e minúsculo, com duas mesas ao ar livre, à sombra de uma árvore frondosa, de onde se descortinava um esplêndido panorama das águas do Bósforo douradas pelo sol. Logo veio o dono, um turco bigodudo e sorridente que, como logo vi, era também garçom e cozinheiro. Viajante experimentado, resolvi não arriscar e pedi um prato simples: peixe grelhado e legumes cozidos.

Ajeitei-me na cadeira, relaxei, deixei meus olhos percorrerem a belíssima paisagem. O turco voltou e colocou sobre a mesa alguns pequenos pratos à moda de couvert: um pedaço de queijo de cabra, meio pão quentinho, redondo e pesado colocado diretamente sobre a mesa, um frasco com vinho local, um outro com puro azeite de oliva e, maravilha das maravilhas, uma cumbuca cheia de enormes e brilhantes azeitonas negras. Não esqueço o ligeiro tremor que tomou de assalto minhas papilas gustativas. Ele retorna até hoje, toda vez que vejo olivas pretas. Sobretudo aquelas grandonas e brilhantes.

Feliz como uma criança, comecei a provar daquelas iguarias, alternando bocados das comidas com goles do vinho turco – que não era nenhum Château Latour, mas dava para o gasto. Pouco a pouco, penetrei num plano mágico de consciência. Cada gole de vinho, cada bocado de pão e queijo, cada azeitona que se dissolvia em minha boca pareciam trazer para dentro de mim toda a natureza daquele lugar. Ao degustar aquelas coisas, percebi que elas tinham o poder de me ligar, de modo harmonioso, com tudo aquilo que me cercava. Através da exaltação do paladar senti-me bem conectado com a terra turca, abraçado pela sombra generosa da árvore, iluminado pela luz forte e dourada que as águas do canal refletiam. Foram momentos em que me senti inteiramente parte daquele todo, como se entre eu mesmo e o ambiente que me cercava não houvesse separação. Senti-me inteiro, pleno, feliz da vida. E provei imensa gratidão por aquela comida aparentemente tão simples, mas que, por trás da sua singeleza, escondia um poder insuspeitado.

Essa experiência despertou em mim a antiga noção da sacralidade dos alimentos. Desde então, nunca mais fui capaz de desrespeitar sequer um grão de arroz, e entendi por que todas as grandes religiões preservam de algum modo o culto aos alimentos. Os africanos, com seus ebós do candomblé e suas comidas esmeradas dedicadas aos diferentes orixás; os indianos, que oferecem pujas (oferendas) a seus deuses; os japoneses e chineses, que põem comida nos altares nos rituais de culto aos antepassados; e até o cristianismo, que preconiza a comunhão com Cristo através do consagrado alimento da hóstia e do vinho.

Na Índia, como em todos os lugares onde predomina uma espiritualidade animista, costuma-se homenagear as divindades oferecendo-lhes comida

Hoje, embora sem o mesmo fervor nem a mesma sabedoria, entendo Santa Teresa d’Ávila – a primeira doutora da Igreja – quando ela dizia: “Quando estiver à mesa, não fale a ninguém, conserve os olhos baixos, e pense na mesa celestial e na comida que ali é servida, pois a comida é Deus em Si Mesmo; e pense nos hóspedes que se sentam a essa mesa, e que são os anjos”. Teresa era uma santa que sabia das coisas.

E você, pertence a uma daquelas raras famílias que ainda cultivam o hábito de fazer uma breve oração de agradecimento antes das refeições? Pois saiba que esse costume, longe de ser apenas uma rotina religiosa, reflete uma convicção que o ser humano traz consigo desde os tempos das cavernas: a crença de que o preparo dos alimentos, o ato de comer e a própria comida são coisas sagradas. E, como tais, são caminhos que podem conduzir ao encontro consigo mesmo, com os outros, com a vida e o mundo.

A visão antiga de amor e de respeito aos alimentos, ao ato de comer e à arte da culinária foi infelizmente perdendo força no decorrer dos tempos. A maioria de nós não tem mais a consciência do aspecto sagrado dessas coisas. Conserva uma visão pré-lógica em relação à alimentação. Seu único critério de julgamento é: “Eu gosto ou eu não gosto”. Sua atração por certas comidas e a rejeição que sente por outras são ditadas por critérios completamente subjetivos e ligados a preferências ditadas por condicionamentos de todos os tipos. No entanto, muitos dos maiores sábios que a humanidade já produziu foram unânimes ao dizer que “nós somos o que comemos”. Aquilo que comemos, e o modo como comemos e preparamos nossos alimentos, afeta a natureza das células do organismo e o funcionamento dos nossos órgãos. Numa outra linguagem, mais esotérica mas nem por isso menos verdadeira, podemos dizer que as “vibrações” de tudo aquilo que introduzimos em nosso organismo modificam as vibrações do organismo como um todo. É por saberem disso que culturas clássicas, voltadas para o progresso espiritual das pessoas, criaram filosofias e sistemas alimentares muito refinados. Na Índia, por exemplo, foi desenvolvida uma inteira escola espiritual denominada anna ioga, a ioga dos alimentos. Eis alguns dos seus preceitos básicos:

1) Nunca coma em excesso. Ao final de uma refeição o estômago do iogue deve conter metade da sua capacidade de comida, uma quarta parte de água e a outra quarta parte de ar.

2) Coma alimentos leves, saudáveis, não-adulterados, que sejam de fácil digestão. Abster-se ao máximo de comidas pesadas, muito gordurosas e condimentadas. Evitar o excesso de bebidas estimulantes, café, chá, alcoólicos.

3) Preocupar-se com as vibrações associadas com a proveniência, a preparação e a ingestão de alimentos. A sensitividade da maioria de nós está sempre tão embotada ou tão pouco desenvolvida que quase não conseguimos perceber isso. Mas aqueles que se desenvolveram no caminho da purificação espiritual segundo as regras da ioga sabem que os alimentos só devem ser ingeridos quando sua preparação for feita com amor e cuidado. Os iogues acreditam piamente que as vibrações do cozinheiro impregnam a comida e são absorvidas por quem as come.

4) A calma é o estado mental e emocional mais propício para uma boa alimentação. Existe um provérbio sufi que diz: “Se uma pessoa come com raiva, a comida vira veneno”.

5) Finalmente, sempre segundo os ensinamentos da anna ioga, não se pode prescindir da consagração da comida antes de ingeri-la. Consagrar a comida, nem que seja através de um breve e silencioso pensamento de gratidão, significa oferecê-la conscientemente para a divindade que possibilitou a sua obtenção. O cristianismo conserva essa tradição ao preconizar orações de graças antes das refeições.

Segundo essa ótica, é lastimável que a sociedade moderna consumista, tecnológica e racional tenha perdido a arte e a religião da comida. Agimos em geral de modo desrespeitoso e descuidado quando comemos, e isso, segundo os estudiosos, é fonte de um número enorme de doenças e distúrbios. Mas há uma luz no fim do túnel. São os cientistas e pensadores da moderna ecologia – tanto a ecologia da natureza quanto a da pessoa e a da sociedade humanas – que afirmam, fazendo eco às tradições do passado, que o ser humano não é uma entidade separada, existindo num universo criado para lhe servir. Bem diferente disso, o ser humano, nascido do barro da terra, é apenas o último elo no tempo de uma série de seres com os quais ele vive numa permanente relação de troca e simbiose. Dessa noção de ecologia geral – que deverá determinar toda a cultura do atual milênio – nasce a ecologia da alimentação. Ela ensina que o alimento deve ser tratado com amor, respeito e cuidado simplesmente porque, uma vez ingerido, passa a fazer parte integrante de nós.

“Aquele que come sem render graças, come um alimento roubado”, diziam os antigos. Uma noção infelizmente abandonada nos dias agitados em que vivemos, ao mesmo tempo em que as latas de lixo extravasam restos desperdiçados e pobres animais domésticos são transformados em meras máquinas de satisfazer nossa gulodice. Por outro lado, todas essas comidas ingeridas apressadamente, só para encher a barriga, com a mente voltada para os compromissos da tarde, ou como meros pretextos para a discussão de negócios importantes, fazem muito mais mal do que bem. É fundamental descontrair-se antes das refeições, mastigar lentamente, manter a calma, concentrar-se no prazer da comida – pois o sabor em si mesmo constitui um importante alimento. Qualquer médico pode afirmar que, se a nutrição no cotidiano passar a ser um ato tranquilo e consciente, muitas doenças, principalmente as do estômago e do sistema digestivo, seriam eliminadas naturalmente.

No Japão (foto), na China, na Índia, e em todas as refinadas e antigas culturas orientais, o ato de comer e de cozinhar está sempre associado a uma preocupação de beleza estética

Os chineses, do alto da sua sabedoria milenar, degustam com palitos. Existe aí um duplo símbolo: o símbolo da paz, porque palitos não são instrumentos agressivos ou cortantes; o símbolo do cuidado afetuoso que presidiu a preparação dos pratos, onde tudo foi antecipadamente cortado em pequenos pedaços e liberado daquilo que não se come. E os japoneses, você já observou o refinamento artístico que eles empregam no preparo dos seus sushis, sashimis, tempurás? Para as velhas culturas orientais a culinária é uma arte sagrada que envolve todos os sentidos, inclusive os olhos. O comer, nessa perspectiva, deixa de ser um ato frio e mecânico, e atinge uma dimensão humana. Torna-se uma verdadeira ioga – um exercício de religação consigo mesmo e com a divindade -, ao mesmo tempo técnica de relaxamento, de concentração e de meditação, além de satisfação de uma necessidade biológica fundamental. Ele reassume o seu sentido original, baseado nas noções de equilíbrio, prazer sutil e harmonia geral, tão fundamentais para a boa saúde e a felicidade. Se perceber isso, aquele que come em excesso, com pressa, sem sequer saber o que está comendo, sem consciência do valor sagrado do alimento, terá mais chances de se transformar num ser calmo e harmonizado. Pois, como diz George Osawa, o criador da macrobiótica, “o mundo forma uma unidade integrada onde cada criatura carrega a sua parcela de vida. É, portanto, um crime que certamente acarreta conseqüências desperdiçar um único grão de arroz, ou comer além das necessidades, enquanto no mundo tantas pessoas são subalimentadas e morrem de fome”.

COZINHAR É MEDITAR

Como fazer da arte culinária uma forma eficiente de meditação? É fácil. Basta lembrar da definição mais simples, mais ampla e verdadeira de meditação: “Meditar é estar inteiro naquilo que se faz”. Qualquer atividade humana, praticada desse jeito, pode transformar-se em meditação. Aplicada à cozinha, a meditação significa transformá-la num ateliê de arte muito limpo, organizado e eficiente. Aplicada a você, significa que a partir do momento em que veste o avental você encarna o artista criativo que existe no seu íntimo. Aprenda a se respeitar como tal. Aprenda a gostar de cozinhar, a não ver essa atividade como uma obrigação maçante e cansativa à qual você se obriga ou é obrigado a desempenhar por força das circunstâncias. Passe a ver a cozinha como um templo, e a si próprio como grão-sacerdote ou grã-sacerdotiza da culinária, com o poder de realizar magias extraordinárias apresentadas na forma de apetitosas iguarias.

Escolha bem as receitas e os ingredientes. Não economize no capricho. Não faça nada de modo alheio, automático, ausente. Evite o mais possível cozinhar quando está tomado por estados emocionais negativos. Esteja sempre inteiro, firme  e tranquilo em cada fase do trabalho, desde lavar as verduras até aquelas últimas pitadas de condimento que equivalem às pinceladas de gênio de um pintor. Sobretudo, lembre-se que cozinhar não requer apenas mãos hábeis e cabeça inteligente. Cozinhar é doação, seja para você mesmo, seja para aqueles que vão desfrutar do seu talento. Tudo isso exige também um coração amoroso, consciente de que, em matéria de amor, receber é ótimo, mas dar é ainda melhor.

Na Mongólia, país de tradição budista, os pastores nômades costumam orar antes das refeições.

Originally posted 2010-04-15 18:29:04.

Comentários

comentários

10 pensou em “Somos o que comemos

  1. Luis Pellegrini Autor do post

    Tô com tantas saudades de você, Adriana! Um abraço foooooooorte.

  2. Zamali Dória

    Pefeito, Luis. Importante não perder noção das belas e boas coisas de se estar vivo. Parabéns!

  3. Conchita Aguiar

    Gostei muito do seu texto, dá agua na boca e vontade logo logo de viajar para sentir de perto todas essas delícias. de mais a mais vc não comentou do som que o mar produz aos nossos ouvidos. este sim eu sei que vou amar, porque em certa ocasião, pesquisando no Google, ouvi a reprodução desse som e ele não sai do meu pensamento… grata.abraços.

  4. rachel mikowski

    adoro tudo o que você escreve. gosto muito deste assunto. parabens amigo.

  5. Luis Pellegrini Autor do post

    Olá Kauanne: infelizmente não posso preparar um resumo desse tema para você. Por que não arregaça as mangas e faz o resumo você mesmo? Matará dois coelhos de uma só cajadada: vai entender melhor o assunto, e fará o seu trabalho escolar. Abração.

  6. Kauanne

    Eu tenho que fazer um trabalho sobre isso. Porem esse texto é muito grande! Teria como vc me mandar um resumo por email?

  7. adriana lucena

    Querido Luis!

    Ainda sinto o sabor incrível da pasta ricamente executada por voce na Quinta da Aroeira, temperada com carinho, paz e amizade…
    Obrigada por textos tão fantásticos! obrigada por tudo que voce é.
    E vivas à ecogastronomia!
    um cheiro com saudades, adriana

  8. Walter Sasso

    Maravilhoso este texto. Me fez meditar nos costumes dos meus ascendentes italianos. Comiam sempre unidos, tiravam os chapéus e nunca comiam com o dorso nu, sempre vestidos. A refeição era sempre servida quente e fumegando. O pão, depois de aberto(algumas famílias abriam com as mãos e não usavam facas para corta-lo) deveria ficar sempre com o lado do miolo de frente para a pessoa, nunca virado. O vinho quando acidentalmente derramava na mesa, era sinal de bom presságio. As pessoas molhavam a ponta de seus dedos no vinho derramado e ungiam suas testas. Um clima sacro envolvia o ato de se reunir e comer. Sentavamos juntos e nos retiravamos juntos. Em uma cabeceira sentava o patriarca e na outra a matriarca da família.

  9. Jemima

    Que bom poder ler um texto tão completo sobre alimentação. Objetivo, sem clichês,
    sábio e pedagógico. Deveria ser publicado nas revistas que pregam a ditadura da boa forma, nas escolas, faculdades, academias etc. Apesar de ter me arreganhado o apetite, obrigada pela aula professor Luis! Abs, Jê.