Desde 14 de junho último, as mulheres têm permissão para dirigir veículos na Arábia Saudita. Ao mesmo tempo – e desde então – uma campanha para denegrir as feministas sauditas, seguida da detenção das mais famosas entre elas, mostra bem os limites da liberalização do regime
Por: Diana Mouqalled
Fonte: Site Daraj, Beirute, Líbano
“Reina um clima de terror nunca antes visto”, contou-me uma amiga ocidental, ao regressar de uma viagem de negócios à Arábia Saudita. Pensei nisso enquanto lia o fluxo de mensagens que alguns partilhavam no Twitter, congratulando-se com a detenção de mulheres ativistas sauditas pelos direitos humanos, acusadas de serem “agentes ao serviço de estrangeiros” e de “espionagem”.
Também aqui, no Líbano, se lança com a mesma facilidade este tipo de acusações. Eu mesma fui alvo de uma dessas investidas. Bastou-me criticar o domínio, em termos políticos e de segurança, que o Hezbollah (partido-milícia xiita apoiado pelo Irã) exerce sobre o nosso país – ou reclamar liberdades públicas e individuais – ou insurgir- me contra a camisa-de-força do confessionalismo (1).
Não deixa de ser um grande paradoxo que a Arábia Saudita esteja reproduzindo o que se pensava ser apanágio do Hezbollah no Líbano: campanhas de calúnia no Twitter e acusações falsas para prejudicar as vozes que incomodam. Tudo para denunciar um pretenso “pacto com o inimigo”.
No Líbano, tivemos o caso dos “xiitas da Embaixada” (vários intelectuais e jornalistas xiitas libaneses, críticos do Hezbollah, viram as suas fotografias difundidas pela mídia e foram acusados de serem agentes de países estrangeiros). E agora, na Arábia Saudita, temos o caso das “mulheres da Embaixada”. Isto diz muito acerca da mentalidade pronta a denunciar impiedosamente os “traidores”.
Desde que (em 2017) começaram a ser anunciadas reformas sociais na Arábia Saudita, muitos ocidentais têm visitado o reino. Assim que ali chegam, tentam contatar ativistas pelos direitos humanos. Uma semana antes das detenções, um grupo de europeus encontrou-se com uma das feministas que seria presa por ter discutido questões como os direitos das mulheres e a liberdade de expressão.
Ecoando as palavras da minha amiga sobre o clima de medo que se vive na Arábia Saudita, parece que aquelas pessoas deixaram os telefones em outro cômodo da casa enquanto conversavam, por terem medo de estar sendo vigiadas e gravadas.
Lançadas às feras
Pouco mais de um mês antes de entrar em vigor (a 14 de junho) a autorização para as mulheres dirigirem automóveis, as ativistas pelos direitos das mulheres foram lançadas às feras por um jornal saudita que publicou os seus nomes e as suas fotografias na primeira página. Dezessete pessoas, entre elas sete mulheres, foram encarceradas dia 15 de maio, confirmaram fontes oficiais.
Oito saíram entretanto em “liberdade provisória”, nomeadamente Aislia al-Mana, Hcssah al-Sheikh e Madeha al-Ajroush, que estiveram à frente dos primeiros protestos, em 1990, pelo direito de conduzir. Até a data em que escrevo continuam detidos cinco homens (um deles é o empresário e filantropo Abdelaziz al-Meshaal, envolvido numa campanha contra a violência doméstica) e quatro mulheres, “por haver contra elas provas incriminatórias suficientes e por terem confessado os seus crimes” (segundo um comunicado da procuradoria).
0 jornal saudita que identificou os detidos acusou-os de “agir de modo organizado para violar princípios religiosos e nacionais fundamentais; manter contatos suspeitos com instâncias estrangeiras; mobilizar para a sua causa pessoas que trabalham em cargos governamentais sensíveis; e apoiar financeiramente, no estrangeiro, elementos hostis ao pais, com a finalidade de abalar a segurança, a paz social e a unidade nacional”. E concluiu: “A pátria vomita os traidores.”
Entre os detidos estão as destacadas feministas Loujain alJ-lathloul, Aziza al-Yousef e Eman el-Nafjan. Todas elas têm sido militantes não só pelo direito das mulheres conduzirem mas também pela abolição da sinistra lei do “guardião masculino” (que obriga as mulheres sauditas a precisarem sempre ter a presença de um homem ao lado (pai, marido, irmão ou tutor responsável) quando desejam fechar algum negócio, alugar uma casa, etc. Ei-las, pois, transformadas em “agentes ao serviço de uma embaixada estrangeira” e em “criminosas que procuram destruir a pátria”. Tudo isto sem nunca ter sido aberta uma investigação ou instaurado um processo judicial contra elas.
Ousar elevar a voz
São sempre as mesmas acusações, propagadas para manchar a reputação das pessoas suspeitas. São responsabilizadas por “atacar a religião, as bases da sociedade ou a estabilidade do Estado”. O ponto em comum nestas detenções de homens e de mulheres é, contudo, o fato de terem ousado elevar a voz.
Segundo a organização humanitária Human Rights Watch (HRW), as autoridades do reino saudita já tinham telefonado, em setembro, a várias mulheres para as advertir de que não poderiam fazer declarações à imprensa (sob pena de serem castigadas). Este aviso foi feito na véspera do anúncio do levantamento da proibição de as mulheres conduzirem veículos.
É esta a dificuldade do problema: as reformas no reino wahhabita (a doutrina rígida e puritana do islã imposta pelo teólogo Muhammad ibn Abd al-Wahhab), nos domínios sociais e econômicos, são necessárias e vitais. São reformas que seduziram muitos sauditas em vários setores, particularmente os jovens que aspiram a uma abertura da sociedade e a uma vida livre. Mas, no fundo, estas reformas só abrangem áreas de divertimento – cinema, concertos, abertura de estádios de futebol às mulheres, etc.-, e não abarcam, de modo algum, a política e os direitos civis.
A Arábia Saudita contratou grandes agências ocidentais de relações públicas para melhorar a sua imagem no estrangeiro. Numa viagem pelos EUA e pela Europa, que serviu para comprar mais armas para a sua guerra no Iêmen, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, ou MbS, teve vários encontros com personalidades ricas e poderosas: Tim Cook, da Apple, Bill Gates, da Microsoft, e Elon Musk, da Tesla: magnatas como Michael Bloomberg, Rupert Murdoch ou Richard Branson; celebridades de Hollywood como The Rock, Morgan Freeman ou Oprah Winfrey – todos eles desejosos de entrar no mercado saudita.
Porém, os fatos não enganam: não há reformas genuínas e até mesmo as que dizem respeito às mulheres são parciais, porque perdura o tenebroso sistema do “guardião masculino”, que impede as mulheres de viajarem, de obterem um passaporte ou de se casarem sem o consentimento de um tutor (pai, irmão ou marido; por vezes, até algumas decisões sobre a vida de uma mulher são tomadas por um filho menor, que tem mais direitos do que a mãe). A “lei do guardião” continua a ser o principal problema para a liberdade e a independência das sauditas.
As detenções de agora funcionam como uma mensagem do regime: “Vocês podem conduzir, mas devem manter a boca fechada”.
(1) Nota da Redação: Confessionalismo é um sistema de governo que foi criado, de jure, para unir religião e política. Pode também significar a distribuição de poder político e institucional proporcionalmente entre as comunidades religiosas. Embora tenha sido concebido para ser uma solução temporária “até que a Câmara promulgue novas leis eleitorais, numa base não-confessional”, passados mais de 80 anos, o confessionalismo ainda é o sistema de governo implementado no Líbano. Todos os postos no governo e cadeiras na legislatura são rateados entre os diferentes grupos religiosos de acordo com um acordo político, e de acordo com o peso demográfico relativo desses grupos.