Uma igreja, dois papas. A “guerra” entre Bento e Francisco

Ao contrário do previsto, após renunciar ao papado Bento não se enclausurou num convento para nunca mais ser visto ou ouvido. De acordo com uma análise recém publicada na revista Vanity Fair, ele não hesita em mandar recados e arregimentar tropas. Mais uma pedra no sapato de Francisco, que luta em meio à tempestade dos escândalos de abuso sexual e pedofilia no seio da Igreja.

Por: Fernanda Cancio

Fonte: Diário de Notícias, Lisboa

A guerra entre conservadores e liberais no seio da Igreja Católica não é de agora, decerto. Mas é a primeira vez na história da instituição em que cada um dos lados tem um papa – vivo. E se um deles tem o cognome de “emérito”, a verdade é que, se houve quem pensasse que iria passar o resto da vida em recolhimento e oração, “desaparecendo” do mundo dos vivos, enganou-se. Bento nunca saiu do Vaticano e nem sequer se mantém em silêncio.

É isso que evidencia a revista Vanity Fair, num longo artigo publicado nesta terça-feira, no qual o jornalista e escritor britânico John Cornwell, autor de várias obras sobre os meandros da igreja católica e sobre papados – entre elas Hitler’s Pope -The secret story of Pius XII (O Papa de Hitler – A História Secreta de Pio XII, 1999), e A Thief in the Night – The Mysterious Death of Pope John Paul I (Um ladrão na noite – A morte misteriosa do Papa João Paulo I, 1989) – descreve vários episódios reveladores de, no mínimo, um mal-estar entre os dois pontífices. “Se Francisco é o papa vivo que reina, Bento é a sua sombra, o papa emérito morto-vivo”, escreve Cornwell.

“Se Francisco é o papa vivo que reina, Bento é a sua sombra, o papa emérito morto-vivo”

E prossegue: “Em 2013, Bento anunciou inesperadamente a sua renúncia. Era o primeiro papa a fazê-lo em quase 600 anos. Mas a seguir, ao contrário do que muitos esperavam, não se enfiou num obscuro mosteiro bávaro. Ficou no mesmo lugar, continuando a aceitar ser tratado por ‘sua santidade’, a usar ao peito a cruz de bispo de Roma, a publicar, a encontrar-se com cardeais, a fazer pronunciamentos. A sua mera existência encoraja os conservadores que querem minar o reinado de Francisco.”

É, considera o jornalista, uma situação para a qual é difícil encontrar precedentes. “Com que podemos comparar esta circunstância de uma igreja com dois papas? Estamos nos domínios dos arquétipos e do mito. Pensemos no Rei Lear, que deu todo o poder mas se manteve perto para controlar, resultando em desastre, ou no fantasma em Hamlet. A mera presença de um ex papa já seria o suficiente para pôr em causa a força de espírito e a independência de Francisco desde o primeiro dia.”

Poderia o simpático João XXIII, pergunta Cornwell, “ter iniciado a reforma do Concílio Vaticano Segundo se Pio XII, o seu autocrático predecessor, estivesse a observar, lugubremente, de uma janela vizinha? E iria João Paulo II abanar a árvore apodrecida da União Soviética se o angustiado e hesitante Paulo VI , que chegou a ponderar uma concordata com Moscou, o estivesse puxando pelo braço?”

O escritor acha que não: “Qualquer que seja a direção do papado, esquerda ou direita, para o melhor ou o pior, é a iniciativa única e exclusiva de um papa de cada vez que lhe confere suprema autoridade e poder. O segredo da unidade católica é a lealdade, em todas as circunstâncias, ao único supremo pontífice vivo. A briga entre os leais a Francisco e os insurgentes de Bento ameaça provocar a maior divisão na Igreja Católica desde a Reforma do século 16, quando Martinho Lutero e outros reformistas lideraram a revolta protestante contra o Vaticano.” E cita o historiador Diarmaid MacCulloch, da Universidade de Oxford: “Dois papas é a receita para um cisma.”

Ainda por cima, dois papas com visões tão diferentes. Desde que João Paulo II o nomeou Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, ou, nas palavras de Cornwell, “fiscalizador chefe da doutrina, em 1981, o então cardeal Joseph Ratzinger defendeu uma Igreja Católica menor, limpa de imperfeições. A visão de Francisco é diametralmente oposta: quer uma igreja aberta, acolhedora, misericordiosa para com os pecadores, hospitaleira face aos estranhos, respeitosamente tolerante de outras fés. Procura encorajar os que duvidam, consolar os feridos, e trazer de volta os excluídos pela respetiva orientação. Compara a igreja a um hospital de campanha para os espiritualmente doentes.”

“A briga entre os leais a Francisco e os insurgentes de Bento ameaça provocar a maior divisão na Igreja Católica desde a Reforma do século 16, quando Martinho Lutero e outros reformistas lideraram a revolta protestante contra o Vaticano.”

As trincheiras são tão óbvias que se consubstanciam em tshirts: Matteo Salvini, atual ministro da Administração Interna e líder do partido de extrema-direita Liga (antes Liga Norte), que se notabiliza pelas suas posições xenófobas, foi fotografado em setembro de 2016 com uma em que se vê a cara de Francisco com ar horrorizado com o escrito “O meu papa é Bento”. É normal: se Francisco passa a vida a apelar ao acolhimento de refugiados, Salvini quer vê-los todos pelas costas. Mas será normal que, estando vivo e a observar, Bento não rechace este tipo de apoio? Tanto mais que, como Cornwell frisa, o papa “reformado” continua a opinar e a fazer-se ouvir – quer diretamente quer através de outros.

Matteo Salvini (direita), atual ministro da Administração Interna da Itália e líder do partido de extrema-direita Liga, em 2016, mostrando uma Tshirt que diz “O meu papa é Bento”

Um ofício papal alargado ou só um papa?

Um desses outros é o seu secretário, o arcebispo alemão Georg Gänswein. Este, que vive na atual residência do papa emérito – a qual, conta Cornwell, fora um convento para 12 freiras contemplativas no tempo de João Paulo II e que Bento mandou renovar e preparar (luxuosamente, parece) quatro meses antes de anunciar a sua renúncia – declarou em maio de 2016 que Francisco e Bento representam um único ofício papal “alargado”, com um membro “ativo” e um “contemplativo”. Francisco teria rejeitado a ideia de imediato: “Só há um papa”.

Desde essa altura, diz Cornwell, a relação entre o papa investido e o emérito teria se deteriorado. Em julho de 2017, no enterro do cardeal conservador (e crítico de Francisco) Joachim Meisner, arcebispo emérito de Colônia, Gänswein leu uma carta de Bento. Esta contém, no entender do autor do artigo da Vanity Fair, uma frase que pode ser considerada muito desestabilizadora do pontificado do atual papa. Nesta, Bento diz que Meisner estava convencido de que “o Senhor não abandona a Sua Igreja, mesmo que o barco tenha feito tanta água que esteja à beira de afundar.” Para Cornwell, Bento parece estar dizendo que a Igreja Católica comandada por Francisco está se afundando.

Mas não fica por aqui: em setembro último, Gänswein deu uma palestra na biblioteca do parlamento italiano por ocasião do lançamento da tradução italiana do livro The Benedict Option (A opção de Bento), do escritor americano Rod Dreher, descrito por si mesmo como um “conservador empedernido”. O livro defende que a civilização ocidental, nomeadamente os EUA, se encaminham para um tempo de caos e negritude, uma nova idade das trevas, e que o caminho é voltar aos ensinamentos de Bento de Núrsia, o fundador dos monges beneditinos. Gänswein explicou à audiência que a crise de abuso sexual na Igreja Católica é a idade das trevas da instituição, o 11 de setembro católico. Um paralelismo que foi interpretado por Dreher como significando que o salvador atual é o papa emérito.

Cornwell encontra outros sinais de perversidade – não é muito difícil perceber para onde pende o seu coração na disputa que descreve – na conduta de Bento, até antes de renunciar. Refere por exemplo o fato de em 2012, pouco antes de anunciar a sua inesperada decisão, ter nomeado o bispo conservador Gerhard Ludwig Müller para o lugar que fora seu sob João Paulo – ou seja, designando um conservador de linha dura para fiscalizador da doutrina (num ministério que está também encarregado de investigar casos de abuso sexual) do qual o seu sucessor teria dificuldade em retirá-lo sem parecer desrespeitador – de facto, Francisco só o substituiu em 2017. E não só nomeou Gänswein como seu secretário pessoal como também chefe de gabinete do papa – o que significa dirigir a residência papal no palácio apostólico, onde é suposto os papas viverem e trabalharem. Isso, frisa Cornwell, permitiria ao secretário e homem de confiança do papa emérito monitorizar toda a atividade do novo pontífice.

O que significa que a decisão de Francisco de não ocupar as luxuosas instalações que há séculos são a casa dos papas pode ter também tido a ver com dar um recado a Bento e Gänswein – pelo menos na interpretação de Cornwell. Assim, Francisco instalou-se na modesta Casa Santa Marta, onde ficam os clérigos que visitam o Vaticano. Permite a Gänswein que organize recepções nos aposentos papais para reis e chefes de Estado, mas o resto do tempo está fora do alcance do secretário de Bento.

É possível um cisma?

Frisando que, aos 91 anos, cinco após renunciar, Bento parece manter vigor físico e mental, Cornwell interroga-se sobre os motivos da sua resignação. E sobre que estratégia terá em vista. Será que um cisma, ou seja, a divisão da Igreja Católica em duas, é possível?

Certo é que, conclui o jornalista, se assiste a um impasse. Francisco está cada vez mais isolado e acossado por escândalos sucessivos; a presença de Bento e as suas intervenções não ajudam, pelo contrário.

Mas se, argumenta Cornwell, é tentador lançarr a culpa desse impasse a Bento, o rígido moralista e o defensor de uma igreja mais pequena e mais pura, aquele que renunciou sem deixar o palco, aquele cuja mera existência mina a autoridade de Francisco, também há motivo para acreditar que este último tem os seus próprios motivos para querer provocar uma crise.

E explica: “Desde os primeiros dias do papado, falou de forma a sugerir que procura, que provoca, que pede uma mudança maciça numa autoritária, dogmática teimosamente inamovível Igreja que mostra os seus frutos amargos nos milhares de jovens fiéis abusados em todo o mundo católico. Uma purga drástica dos privilégios obstinados, do secretismo, da riqueza, do tradicionalismo, da falta de transparência e de controle, pode ser a condição necessária de um novo começo.”

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