Corrida aos polos. Ártico e Antártica atiçam a cobiça dos poderosos

 

Exploração de minérios, turismo, pesquisa científica, interesses militares, novas rotas marítimas, etc. O aquecimento global mudou a forma como o mundo olha para as regiões polares. A concorrência cresce entre os países que querem aproveitar as novas oportunidades, sobretudo os Estados Unidos, a Rússia e a China – último país a entrar na corrida, e que definiu as regiões polares como estando dentro dos seus “novos horizontes estratégicos”. No extremo norte da Noruega, alguns se preparam para tirar proveito da situação. Na foto de abertura, o quebra-gelos russo Yamal.

Por: Peter Ford

Fonte: Jornal The Christian Science Monitor, Boston

O norueguês Rune Rafaelsen pensa em grande. É presidente da Câmara de Kirkenes, pequena cidade portuária no extremo Norte da Noruega, a 400 km do Circulo Polar Ártico. A cidade é o terminal de uma rota de navios de passageiros e de carga que navegam diariamente ao longo da costa, percorrendo pitorescos fiordes.

Os três mil residentes vivem sobre uma mina de ferro que faliu em 2015. Kirkenes é conhecida pelas auroras boreais e pelos king crabs (caranguejos-rei), enormes crustáceos com patas do tamanho de remos.

Esta cidade coberta de neve é o local onde Rafaelsen quer criar uma “nova Singapura”, integrada na rota comercial que, mais dia, menos dia, ligará o Pacífico ao Atlântico através das águas polares.

Rune Rafaelsen, empreendedor visionário quer transformar Kirkenes em uma Singapura do Ártico

O projeto pode parecer incongruente, mas com o degelo, que, pela primeira vez em dezenas de milhares de anos, abre a rota do Ártico ao resto do mundo, esta região remota e inóspita, uma das últimas fronteiras inexploradas, pode alimentar um conflito geopolítico em larga escala.

As grandes potências mundiais, incluindo a Rússia, a China e, até certo ponto, os Estados Unidos da América, além de outros países, estão envolvidas numa concorrência feroz. Trata-se de fazer reivindicações territoriais, explorar vastas jazidas de minério e fontes de energia, e ter a presença militar correspondente.

No entanto, os sonhos de Rafaelsen podem ser menos loucos do que parecem, e esta pequena cidade isolada está no meio de uma tempestade de interesses, investimentos, inovações e lutas pelo poder.

“O Ártico tornou-se um local cobiçado, onde as alterações climáticas e a geopolítica estão intrinsecamente ligadas”, ressalta Mark Serreze, diretor do Centro Nacional de Dados de Neve e Gelo, instituto de pesquisas científicas com sede em Boulder, no Colorado (EUA).

O porto de Kirkenes, no extremo norte da Noruega, para além do Círculo Polar Ártico

Esperanças chinesas

No início do ano, o Eduard Tall, navio transportador de gás natural liquefeito (GNL), batizado em honra de um explorador polar russo do século 19, foi o primeiro barco a atravessar o Ártico sem o apoio de um quebra-gelos (faz parte de uma nova geração de transportadores de GNL capazes de navegar por zonas de gelo com menos de dois metros de espessura, cada vez mais frequentes no inverno devido à diminuição da espessura dos bancos congelados).

“Estão acontecendo coisas muito estranhas”, comenta Serreze. “As temperaturas no Ártico aumentam duas vezes mais depressa do que a média mundial. Segundo as previsões dos peritos, até a metade do século 21 deixará de existir gelo aqui durante os quatro meses de verão; existirá apenas um vasto oceano azul. E os ursos-polares terão provavelmente desaparecido.”

Porém, em Kirkenes, os efeitos das alterações climáticas serão muito mais importantes. “Não aplaudo o aquecimento global, mas ele está acontecendo e temos de tirar partido da situação, afirma Kenneth Stalsett, responsável pelos serviços de desenvolvimento da cidade. Este homem jovem e dinâmico, doutorado em Inovação Estratégica, defende a construção de uma ferrovia que ligue Kirkenes aos mercados europeus, projeto que já obteve a aprovação provisória dos governos da Noruega e da Finlândia.

A nova rota permanece aberta 4 meses ao ano e pode representar enorme economia para os transportes de carga da China e da Rússia.

Questões militares e estratégicas

Não é difícil compreender onde é que os apoiadores do projeto irão encontrar as mercadorias necessárias para rentabilizar a ferrovia. Numa parede do gabinete de Rafaelsen está um papel decorado com recortes em vermelho-escarlate – uma recordação das suas visitas à China. O governo chinês deposita grandes esperanças na futura Passagem do Nordeste (ao longo de 4.800 km do litoral russo, a que Moscou chama Rota Marítima do Norte). Uma viagem experimental entre Xangai e Roterdã demorou menos de um terço do tempo que levaria através da rota habitual pelo Canal do Suez, com as correspondentes economias em combustível e outros custos.

A tarefa, contudo, não será fácil. O Ártico ainda está desprovido de estaleiros de manutenção e consertos navais e de centros de salvamento marítimo. Algumas cartas marítimas são medíocres ou inexistentes. O gelo à deriva ameaça a navegação e as condições meteorológicas são muitas vezes execráveis. Uma rota que ligue os dois oceanos “é sem dúvida possível, mas vai ser preciso muito trabalho”, avisa Lawson Brigham, antigo capitão de quebra-gelos da guarda costeira norte-americana, agora professor na Universidade do Alasca, em Fairbanks. É completamente louco pensar, segundo ele, que os 15 mil navios que hoje, a cada ano, usam o Canal do Suez, vão mudar de itinerário de um dia para outro e juntar-se às duas dezenas de navios que já fazem a passagem pelo Ártico. Mas, do seu ponto de vista, a rota do Norte “pode vir a ser um complemento sazonal”.

Isso é tudo que Kenneth Stalsett precisa para realizar os seus projetos portuários e ferroviários em Kirkenes, o primeiro porto europeu onde poderiam atracar os navios chineses, uma vez cruzado o Oceano Glacial Ártico. Mesmo que só 10% das exportações marítimas chinesas transitassem pela cidade até 2030, isso representaria “um crescimento considerável do transporte marítimo através do Ártico”, afirma Stalsett. “Temos de começar a trabalhar sem perder mais tempo”, diz ele. E se Kirkenes sonha com um crescimento da atividade, o mesmo acontecerá com as águas azul-cobalto que banham a sua costa. Inicialmente, a Rússia planeja utilizar a Passagem do Nordeste para movimentar uma parte crescente das suas exportações de minerais. O navio Eduard Toll, que efetuou uma histórica travessia do Ártico em janeiro último, transportou gás natural liquefeito, carregado no terminal russo de 27 mil milhões de dólares, inaugurado em dezembro último na península siberiana de Yamal (foi financiado em 50,1% pela empresa de gás russa Novatek, em 20% pela francesa Total, em 20% pela chinesa CNPC e em 9,9% pelo Fundo da Rota da Seda, fundo soberano chinês). Faz parte de uma frota de quatro navios para o transporte de gás – 11 outros estão sendo construídos. Até 2023, deixarão o novo porto de Sabetta ao ritmo de mais de um barco por dia.

Navio cruza a passagem do noroeste, no Ártico

A estratégia de Pequim integra-se num quadro mais vasto: tal como os grandes fundos marinhos e o espaço exterior, os polos Norte e Sul são definidos como “novos horizontes estratégicos” chineses na lei de 2015 sobre a segurança nacional

E o transporte não será limitado aos hidrocarbonetos. O Ártico contém uma profusão de recursos “absolutamente cruciais para as grandes economias do século 21”, assegura Olafur Ragnar Grimsson, ex-presidente da Islândia, atualmente responsável pelo Círculo Ártico, fórum de discussões para as questões regionais.

Importância geoestratégica

Na Rússia, a Norilsk Nickel é um dos maiores produtores de níquel e de paládio, e um grande fornecedor de platina e de cobre. Na ilha canadense de Baffin, uma das minas de ferro com melhor qualidade em todo o mundo começou a exportar mineral em 2015. Na Groenlândia, empresas chinesas e australianas preparam-se para a extração de zinco, urânio e vários metais raros. Além disso, os governos da Finlândia, do Japão, da Noruega, da Rússia e da China conversam sobre um projeto de 10 mil km de cabo de fibra ótica a ser colocado no Círculo Polar Ártico até 2020. E a região tem um enorme potencial eólico e geotérmico.

O Instituto de Estudos Geológicos dos Estados Unidos da América prevê que 30% do gás e 13% do petróleo ainda por descobrir possam estar concentrados no Círculo Polar Ártico. A maior parte dessas reservas encontra-se no território ou na zona econômica exclusiva de um ou outro país. Porém isso não impediu a Dinamarca, o Canadá e a Rússia de reivindicarem os fundos marítimos do Ártico como extensão das suas plataformas continentais.

Os Estados Unidos da América, que, enquanto detentores do Alasca, são um país polar, não podem fazer esse tipo de reivindicação, porque as petições são examinadas por uma comissão, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos do Mar, não ratificada por Washington.

Todos esses recursos, agora mais acessíveis, conferem ao Ártico uma importância geoestratégica sem precedentes. A Rússia, que é vizinha de mais de metade do seu litoral, é o pais mais bem colocado para daí tirar proveito. Depois do marasmo das duas décadas que se seguiram ao colapso da União Soviética, em 1991 , Moscou volta a olhar nessa direção. “A riqueza da Rússia vai crescer com o Ártico”, declarou Putin em dezembro passado, durante a conferência de imprensa anual do Kremlin.

Do Ártico já provêm 20% das exportações russas e 10% do produto interno bruto nacional. Após 20 anos de inércia, a Rússia está reorganizando as suas forças militares. Nos últimos anos, construiu ou aumentou seis bases avançadas nas ilhas do Ártico e, segundo um relatório dos serviços secretos dinamarqueses, está equipando as mesmas com aviões de combate. Por aqui andam a maior parte das forças submarinas da Rússia e a sua frota de quebra-gelos, a mais importante do mundo. O Kremlin encomendou dois quebra-gelos equipados com mísseis de cruzeiro de alcance intercontinental, que serão entregues em 2020.

“Não sabemos bem para que fim”, afirmou o comandante da guarda costeira dos Estados Unidos da América no site Defense & Aerospace Report, em dezembro último. “É para impedir o nosso país de aceder àquelas águas? Temos de nos acostumar à ideia de que a resposta é… sim.”

Navio de carga atravessa, no verão, as águas da Passagem Ártica do Nordeste

“Novos horizontes estratégicos”

Os planos da China para o Ártico são igualmente ambiciosos. Em setembro de 2015, quando cinco navios militares chineses penetraram nas águas territoriais norte-americanas ao largo do Alasca, não representaram uma ameaça para os Estados Unidos da América, mas deixaram uma mensagem clara: Pequim quer tornar-se uma grande potência polar. A China autoproclamou-se “o país mais próximo do Ártico”, embora Pequim esteja mais perto do Equador do que do Polo Norte, e multiplicou atividades na região na última década.

A estratégia de Pequim integra-se num quadro mais vasto: tal como os grandes fundos marinhos e o espaço, os Polos Norte e Sul são definidos como “novos horizontes estratégicos” da China, na lei de 2015 sobre a segurança nacional.

“A China tem mais dinheiro para gastar do que qualquer outro país em infraestruturas polares, desde bases a aviões, equipamentos para satélites ou quebra- gelos”, escreve a professora universitária Anne-Marie Brady na sua mais recente obra, China as a Polar Great Power (“A China, Grande Potência Polar”). O tempo e os fundos que o país consagra à investigação científica na região valeram -lhe, em 2013, o estatuto de observador do Conselho do Ártico, fórum intergovernamental para a cooperação regional.

No seu recente Livro Branco sobre a política no Ártico, Pequim privilegia os transportes marítimos, a exploração energética e mineral, bem como a pesca e o turismo. No entanto, por detrás dessas prioridades escondem-se ambições geopolíticas mais vastas, como a de se tornar uma grande potência marítima. “As ideias da China sobre as regiões polares representam graus de ambição e de planejamento que poucos países industriais modernos – ou até mesmo nenhum país – alcançaram, escreve Anne-Marie Brady em The Polar Journal, publicação da qual ela é a editora principal.

Pequim publicou um Livro Branco sobre a sua política no Ártico (o primeiro documento oficial deste tipo), em janeiro de 2015, três dias após a publicação dos trabalhos de Kenneth Stalsett, diretor do Serviço de Desenvolvimento de Kirkenes sobre a construção da ferrovia.

A publicação deste importante documento chinês, com as suas passagens sobre o comércio no Ártico, aumentou a credibilidade do projeto norueguês. Desta forma, os geólogos do Ministério dos Transportes e Comunicações da Noruega já estão efetuando testes no local proposto para o futuro porto de Kirkenes.

Nenhum projeto de tamanha envergadura está em curso no Ártico norte-americano De fato, nenhum trabalho foi feito desde a construção do oleoduto Transalasca, há quatro décadas. Mas a verdade é que os Estados Unidos da América dispõem de uma importante capacidade militar no Ártico, com as suas bases aéreas e os seus sistemas de defesa antimíssil balístico e mísseis nucleares em Thule, na Groenlândia, e em Fort Greely, no Alasca, e que submarinos nucleares norte-americanos se escondem sob os gelos. Em março, o Exército efetuou manobras para testar novos sistemas de armas polares.

Mas, desde o fim da Guerra Fria, a marinha norte-americana concentrou-se mais no Pacífico do que no Ártico. A Guarda Costeira só tem um quebra gelos em perfeito estado de funcionamento. Oito meses por ano, nenhum navio de superfície norte-americano consegue navegar no Ártico. O Congresso aprovou a construção de um novo quebra-gelos, que deverá entrar ao serviço em 2023, mas o problema, segundo Heather Conley, especialista do Ártico no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS) em Washington (EUA), é que o Governo norte-americano “não tem visão estratégica a longo prazo sobreo Ártico e que um novo quebra- gelos não compensa a ausência de política”.

Ainda mais preocupante para os Estados Unidos da América: China e Rússia estão em estreita cooperação na região. O Ártico pode mesmo servir de campo de testes para desafiar Washington e estabelecer uma nova ordem mundial mais multipolar. “É uma evolução que pode ter consequências graves”, avisa Aríld Mae, especialista do Ártico no Instituto Fridtjof Nansen, em Oslo. “O reforço das relações entre a China e a Rússia pode influenciar o equilíbrio das forças internacionais.”

Uma das razões para todas as manobras na região é que há um vazio legal em termos internacionais. Ao contrário da Antártida que é objeto de um tratado internacional, o Ártico é regulado por um conjunto de instituições, tratados e acordos ad hoc e incompletos. “Nunca os países tinham sido confrontados com a necessidade de desenvolver regulamentação para uma região do tamanho da África (…), que desempenha um papel crucial no aquecimento global”, ressalta M. Grimsson, ex-presidente da Islândia.

Apesar de tudo, há esforços de cooperação. Nove países e a União Europeia concluíram um acordo, em dezembro de 2007, para proibir a pesca de alto-mar no setor central do Oceano Glacial Ártico, durante pelo menos 16 anos. Esta moratória vai permitir aos cientistas avaliar as reservas de peixes da região e estudar o habitat marinho ao abrigo de depredações. Um espírito semelhante reina no seio do Conselho do Ártico, fórum intergovernamental que encoraja o desenvolvimento duradouro por via de acordos de cooperação científica, gestão de marés negras e protocolos de busca e salvamento.

Porém muita coisa está em jogo para os países cujo bem-estar depende do Ártico, quer se fale de clima, de economia ou de segurança. Os conflitos de soberania podem agravar-se à medida que as águas do Ártico se tornem mais acessíveis e passem a ser usadas como rotas comerciais ou vistas como reservas de recursos. Os países envolvidos não estarão sempre de acordo sobre as medidas de proteção do ambiente, aplicáveis à prospecção de minerais ou às perfurações de exploração de gás e petróleo.

Estes perigos não são suficientes para desencorajar o visionário Rafaelsen. Quando, das janelas do seu gabinete, olha para as ruas calmas e repletas de neve de Kirkenes, o presidente vê uma cidade preparada para se metamorfosear. “Se tudo correr bem”, afirma, “isto vai mudar a situação para os transportes internacionais e Kirkenes vai assistir a essa transformação. Temos de estar preparados.”

Groenlândia, o novo Eldorado

“Como a calota de gelo que cobre a Groenlândia continua a derreter, o potencial econômico da ilha atrai muitos países. A China distingue-se por causa da sua abordagem específica”, observa o site de informação The Diplomat. O gigante asiático não investe só em exploração mineira (zinco, urânio e ferro) mas também na investigação científica e no turismo, atividades favorecidas pelo aquecimento climático.

Os chineses podem, assim, co-financiar a ampliação dos três aeroportos da ilha, já que o número de turistas chineses na Groenlândia passou de 9.500, em 2007, para 86 mil, em 2017, informa o mesmo site de informação sobre a zona Ásia-Pacífico. Que Pequim faça da Groenlândia, território autônomo dinamarquês, um dos elos essenciais da sua estratégia polar, gera alguma tensão em Copenhague.

A saga dos quebra-gelos

A atual proliferação dos navios quebra-gelos que transitam pelas águas polares diz muito sobre as questões geopolíticas que assolam o Ártico. Em setembro de 2017, a Rússia lançou às águas o Sibir, o terceiro quebra-gelos nuclear da sua frota e o maior do mundo.

Em junho de 2018, a China começou a desenvolver o seu primeiro quebra-gelos atômico. A agência oficial de notícias Xinhua anunciara, já em setembro de 2017, que o navio Xuelong tinha sido bem-sucedido no teste da Passagem do Noroeste para os navios de carga chineses. O Canadá tinha autorizado a passagem do navio julgando tratar-se de uma missão científica.

Em dezembro de 2017, o navio Christophe de Margerie entregou no Reino Unido a primeira carga de gás natural liquefeito, proveniente de um novo terminal siberiano. O enorme navio Yamal, especialmente construído para o transporte de gás, foi fretado pela petrolífera Total e atravessou sem maiores problemas a Passagem do Nordeste.

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