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Malucos da guerra. Quando o combate mata o soldado por dentro

 

Na Europa, havia pelo menos um em quase todas as famílias. Eram a herança (que os governos procuravam esconder) da Primeira Guerra Mundial: homens que voltavam da frente de batalha com graves distúrbios mentais.

Por: Luis Pellegrini

Fotos: Arquivos de imagens da Primeira Grande Guerra

Meu tio Ugo Valério, irmão mais velho de minha mãe, nascido no Brasil, tinha apenas 19 anos e era estudante na Itália quando foi mandado para a frente de batalha da guerra na Líbia, território africano invadido e colonizado pelos italianos de 1934 a 1943. Os horrores que testemunhou (chacinas, estupros, enforcamentos e fuzilamentos sumários, torturas, mutilações, praticados tanto pelos invasores quanto pelos árabes líbios) quase o fizeram enlouquecer. Quando, em estado de transtorno psíquico, parou de lutar, se recusando a continuar participando das atrocidades, foi trancafiado durante mais de dois anos numa saleta escura para trabalhar no telégrafo. Fizeram-lhe esse favor, porque Ugo – “il brasiliano” – era simpático ao comandante das tropas italianas em Trípoli. Se fosse mandado de volta para a Itália, então sob o regime fascista de Benito Mussolini, poderia facilmente ser executado como desertor.

Soldados italianos prisioneiros no campo de concentração alemão de Sigmundberger, durante a Primeira Grande Guerra.

Quando a guerra acabou, meu tio fez as malas e voltou para o Brasil. Aqui chegado, rasgou o passaporte italiano e todas as fotografias e lembranças que possuía do seu país de origem. Sobrou apenas uma foto dele montado num dromedário líbio. Nunca mais voltou à Itália. A duras penas ele refez sua vida por aqui, mas nunca se recuperou dos traumas que viveu na guerra. Tornou-se um homem esquivo, silencioso, amargurado, que só ria quando estava dentro do ambiente familiar. Ugo, na verdade, tornara-se um “scemo di guerra”, um “maluco da guerra”, como na Itália eram injustamente chamados os soldados que não conseguiam suportar e superar os impactos sofridos nos campos e batalha.

Hospitais abarrotados

Seu caso era apenas um, entre dezenas, provavelmente centenas de milhares. Durante e depois da primeira Guerra Mundial, um enorme número de soldados foi internado por distúrbios mentais. Os hospitais estavam abarrotados de ex-combatentes alienados e mudos, que caminhavam como autômatos, com os músculos enrijecidos. Os malucos da guerra. Quem eram eles na verdade?

As fichas clínicas falavam de “tremores incontroláveis”, de “hipersensibilidade aos ruídos”, de “homens inexpressivos, que olham ao redor de si mesmos como pássaros trancados numa gaiola”, que caminham com os braços pendentes e choram em silêncio”, ou que “comem aquilo que encontram, lixo, cinzas, terra”.

Esses quadros clínicos logo suscitaram o interesse dos psiquiatras, especialistas que começavam a surgir no mercado. Em 1915, na revista Lancet – até hoje uma das principais publicações científicas do mundo – o psicólogo Charles Myers usou pela primeira vez a expressão shell shock, “choque de bombardeio” ou, como diríamos hoje, distúrbio de estresse pós traumático.

Myers lançara a hipótese de que as lesões cerebrais fossem provocadas pelo barulho ensurdecedor dos bombardeios ou pelo envenenamento por monóxido de carbono. Mas logo ficou claro que na base desses distúrbios existia uma outra coisa, já que os sintomas se manifestavam também em pessoas que estavam distantes dos bombardeios.

Fenômenos de histeria

O neurologista francês Joseph Babinski em 1917 atribuiu os sintomas a fenômenos de histeria, fenômeno considerado difuso entre as mulheres (hystéra significa útero, em grego). Sugeriu um tratamento à base de hipnose, que é como eram tratados os casos de histeria feminina na época. Com efeito, algumas vezes o tratamento funcionava, no sentido que os sintomas desapareciam ou eram reduzidos. Difundiu-se, por causa disso, a ideia de que tais quadros clínicos fossem fruto de simulações, por parte de soldados que não queriam combater e tentavam dar baixa.

Essa crença abriu estrada para acusações de “efeminamento” ou de “homossexualidade latente”, e a uma série de tratamentos decididamente punitivos, como as agressões verbais e as “faradizações” (de Faraday, estudioso da eletricidade), fortes choques elétricos na região da laringe (em casos de mutismo) ou nas pernas (em caso de imobilidade).

“Essas disciplinas ferozes foram colocadas em ação sobretudo na Itália, país no qual persistiam posturas inspiradas nas ideias de Cesare Lombroso, que classificavam o doente como um ser inferior, uma pessoa débil e primitiva”, explica Bruna Bianchi, historiadora especializada na Primeira Grande Guerra, na Universidade Ca’ Foscari, em Veneza.

“Além disso, em um país no qual o alistamento militar era obrigatório, as autoridades não queriam que a guerra fosse considerada a causa de distúrbios psíquicos: melhor sustentar que o conflito contribuía para revelar desvios de conduta ou degenerações em indivíduos já predispostos”, completa Bruna Bianchi.

Expressão pejorativa e injusta

Por essas razões, além de outras, na Itália e em outros países europeus a questão dos traumas psíquicos decorrentes da guerra foi rapidamente encerrada e qualquer pesquisa a respeito dela foi desestimulada. Dessa forma, mais de 40 mil homens com distúrbios mentais acabaram trancafiados em manicômios estatais. Mas a quantidade é muito maior se considerarmos aqueles que voltaram a suas casas e, mesmo manifestando comportamentos de “maluco da guerra”, foram acolhidos por suas famílias.

E foi exatamente aqui, até para tomar distância da carga emotiva representada por aqueles vultos de olhar ausente e para poder recomeçar a viver após o trauma coletivo da experiência bélica, que as pessoas começaram a chamar aqueles jovens ex-soldados com a expressão feroz, pejorativa e injusta de “malucos da guerra”.

A expressão surgiu na Itália e logo passou a ser utilizada também em outros países da Europa e do resto do mundo, para designar a mesma coisa: aí estão os “fous de guerre” na França, e as dezenas de milhares de ex-soldados norte-americanos que participaram de guerras como as do Vietnam e a do Iraque e que, até hoje, sofrem de estresse pós traumático.