Politicamente correto? Um pé no saco

"É Natal. As bolas eu já tenho".

Sempre achei o politicamente correto uma chatura, e vi com certa apreensão o crescimento nas últimas duas ou três décadas de uma tendência repressiva e castradora podando nossa libido e nossas vitais pulsões de catarse. Agora li um texto que me lavou a alma. Assinado por Luiz Antônio Simas, professor e mestre em História Social no Rio de Janeiro. É dele o blog “Histórias Brasileiras e Tambores de Encantaria”, cuja visita recomendo: http://hisbrasileiras.blogspot.com

O desabafo do Luiz Antônio contem alguns termos pesados, politicamente incorretos. Mas, como o objetivo é mesmo mandar o politicamente correto ao diabo, tudo bem. Além disso, quem me mandou o texto foi minha amiga a jornalista Andiara Maria, de Goiânia, moça de fina educação que, por sinal, faz até um comentário que reproduzo abaixo. E concluí: “Se a Andiara pode, eu também posso!”

Vamos lá: “Recebi e repasso, porque sempre achei tudo isso um exagero. A violência nos livros infantis, nos desenhos animados, nos jogos, etc., tem uma razão de ser, como explica a psicanálise. Se não tivermos onde jogar a nossa sombra, o mais provável será fazermos como aqueles estudantes americanos malucos, tão “bonzinhos, enquadradinhos” e, de repente, pegam uma arma e saem matando todo mundo… Andiara Maria”

Quem (não) tem medo do “politicamente correto?”

Por Luiz Antonio Simas

O cravo não brigou com a rosa.
Chegamos ao limite da insanidade da onda do politicamente correto. Soube dia desses que as crianças, nas creches e escolas, não cantam mais O cravo brigou com a rosa. A explicação da professora do filho de um camarada foi comovente: a briga entre o cravo – o homem – e a rosa – a mulher – estimula a violência entre os casais. Na nova letra “o cravo encontrou a rosa/ debaixo de uma sacada/o cravo ficou feliz /e a rosa ficou encantada”.

Que diabos é isso? O próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da Penha. Será que esses doidos sabem que O cravo brigou com a rosa faz parte de uma suíte de 16 peças que Villa Lobos criou a partir de temas recolhidos no folclore brasileiro?

É Villa Lobos, cacete!

Outra música infantil que mudou de letra foi Samba Lelê. Na versão da minha infância o negócio era o seguinte: Samba Lelê tá doente/ Tá com a cabeça quebrada/ Samba Lelê precisava/ É de umas boas palmadas. A palmada na bunda está proibida. Incita a violência contra a menina Lelê. A tia do maternal agora ensina assim: Samba Lelê tá doente/ Com uma febre malvada/ Assim que a febre passar/ A Lelê vai estudar.

Se eu fosse a Lelê, com uma versão dessas, torcia pra febre não passar nunca. Os amigos sabem de quem é Samba Lelê? Villa Lobos de novo. Podiam até registrar a parceria. Ficaria assim: Samba Lelê, de Heitor Villa Lobos e Tia Nilda do Jardim Escola Criança Feliz.

Comunico também que não se pode mais atirar o pau no gato, já que a música desperta nas crianças o desejo de maltratar os bichinhos. Quem entra na roda dança, nos dias atuais, não pode mais ter sete namorados para se casar com um. Sete namorados é coisa de menina fácil. Ninguém mais é pobre ou rico de marré-de-si, para não despertar na garotada o sentido da desigualdade social entre os homens.

Dia desses alguém (não me lembro exatamente quem se saiu com essa e não procurei a referência no meu babalorixá virtual, Pai Google de Aruanda) foi espinafrado porque disse que ecologia era, nos anos setenta, coisa de viado. Qual é o problema da frase? Ecologia, de fato, era vista como coisa de viado. Eu imagino se meu avô, com a alma de cangaceiro que possuía, soubesse, em mil novecentos e setenta e poucos, que algum filho estava militando na causa da preservação do mico leão dourado, em defesa das bromélias ou coisa que o valha. Bicha louca, diria o velho.

Vivemos tempos de não me toques que eu magôo. Quer dizer que ninguém mais pode usar a expressão coisa de viado? Que me desculpem os paladinos da cartilha da correção, mas isso é uma tremenda babaquice. O politicamente correto é a sepultura
do bom humor, da criatividade, da boa sacanagem. A expressão coisa de viado não é, nem a pau (sem duplo sentido), ofensa a bicha alguma.

Daqui a pouco só chamaremos o anão – o popular pintor de rodapé ou leão de chácara de baile infantil – de deficiente vertical . O crioulo – vulgo picolé de asfalto ou bola sete (depende do peso) – só pode ser chamado de afrodescendente.

O branquelo – o famoso branco azedo ou Omo total – é um cidadão caucasiano desprovido de pigmentação mais evidente. A mulher feia – aquela que nasceu pelo avesso, a soldado do quinto batalhão de artilharia pesada, também conhecida como o rascunho do mapa do inferno – é apenas a dona de um padrão divergente dos preceitos estéticos da contemporaneidade. O gordo – outrora conhecido como rolha de poço, chupeta do Vesúvio, orca, baleia assassina e bujão – é o cidadão que está
fora do peso ideal. O magricela não pode ser chamado de morto de fome, pau de virar tripa e Olívia Palito. O careca não é mais aeroporto de mosquito, tobogã de piolho e pouca telha.

Nas aulas sobre o barroco mineiro, não poderei mais citar o Aleijadinho. Direi o seguinte: o escultor Antônio Francisco Lisboa tinha necessidades especiais. Não dá. O politicamente correto também gera a morte do apelido, essa tradição fabulosa do Brasil.

O recente Estatuto do Torcedor quer, com os olhos gordos na Copa de 2014, disciplinar as manifestações das torcidas de futebol. Ao invés de mandar o juiz pra putaqueopariu e o centroavante pereba tomar no olho do cu, cantaremos nas arquibancadas o allegro da Nona Sinfonia de Beethoven, entremeado pelo coro de Jesus, alegria dos homens, do velho Bach.

Falei em velho Bach e me lembrei de outra. A velhice não existe mais. O sujeito cheio de pelancas, doente, acabado, o famoso pé na cova, aquele que dobrou o Cabo da Boa Esperança, o cliente do seguro funeral, o popular tá mais pra lá do que pra cá, já tem motivos para sorrir na beira da sepultura. A velhice agora é simplesmente a “melhor idade”.

Se Deus quiser morreremos, todos, gozando da mais perfeita saúde. Defuntos? Não. Seremos os inquilinos do condomínio Cidade do pé junto.

Originally posted 2010-11-15 21:23:17.

Comentários

comentários

18 pensou em “Politicamente correto? Um pé no saco

  1. Nathalia Soares Machado

    Eu nem mesmo dou continuidade à uma conversa com gente politicamente correta porque sinto enjoo!

  2. Camila Fraia

    Muito bom! Adorei. Estava ficando preocupada quando cantava qualquer uma dessas músicas para o meu filho…

  3. Clene Salles

    Obrigada pela resposta! Que maravilha Luis, vou gostar de ler, certamente! Aliás quando eu estiver com um pouco mais de tempo, vou procurar o título de algumas matérias suas antigas que me lembro de serem simplesmente adoráveis. Uma delas que eu me lembro agora é sobre aparência física. Me deixou tão envolvida que em seguida vasculhei minhas coisas por aqui. Encontrei textos sobre Pitágoras e acho que Platão escreveu também sobre importância Beleza e Pitágoras sobre Harmonias e medidas aureas…Bem, esta matéria que você escreveu anos atrás, hoje em dia seria um BOOM sobre a questão “politicamente correto”. Verdade seja dita, você me despertou e passei a compreender MUITASSSSS coisas. Lindo, mil Beijos

  4. Luis Pellegrini Autor do post

    Obrigado pelas boas palavras, Clene! Então, vou revirar minhas gavetas para achar um texto sobre budismo que escrevi há muito tempo, quando andei estudando o assunto. Vou revisar e botar no blog. Aguarde.

  5. Clene Salles

    Luis, obrigada pela resposta! Que delícia! Sim é verdade, o budismo é uma das melhores fontes para o treino deste exercício de se equilibrar no caminho do meio. Porque cá entre nós, fala sério, trilhar o caminho do meio, não basta: é preciso manter-se equilibrado enquanto caminha… Ui, ui, ui! E mais ainda – também docemente atento; e é claro, com o coração puro, porém desperto em sabedoria. Uau! Não sei se você sabe, mas sou (mas não estou mais atendendo) orientadora de Feng Shui o que me levou a rever as tradições e conhecimentos orientais. Numa fase da minha vida, ainda bem jovem, fui viver com um casal de budistas em seu templo, porque não tinha onde morar. Os ensinamentos deles me ajudaram muito nesta vida de distorções, mas o que ficou bem marcado (que eles batiam na mesma tecla) que eu precisava dar crédito para a sensibilidade. Quando devemos mover-nos em silêncio? Quando devemos bradar? Quanto é necessário a tolerância? São perguntas de respostas absolutamente difíceis. Os índios norte-americanos nos ensinam que causar constrangimento afeta nosso campo magnético. A tradição Celta nos ensina que não devemos ficar com nenhuma energia que não nos pertença, ou seja devemos devolver o pacote (constrangimento) ao remetente. Onde está o “tlin” da sutil diferença entre levar constrangimento e promover o desenvolvimento? Voltando a baila do assunto politicamente correto minha mente se ocupa inúmeras vezes como conduzir meus trabalhos por aqui… Tenho tentado dar o meu melhor…
    Agora, sim, sim e sim! Gosto bastante da ideia de conversar com você sobre o budismo… não importa se seja curta ou longa a conversa, o importante é a essência desta… Tenho tanto, tanto, tanto que aprender, céus! A cada dia que passa, sei que nada sei…
    Eu tenho comigo algum segmento de crenças? Definitivamente não! Tenho religião? Sim, sempre! É praticamente automático: a cada hora estou tentando entender este mistério fenomenal – o entrelaçamento tão estreito e sutil entre corpo(vida) e alma(espírito). No quesito religião me oriento em re-ligar-me em ação = religião.
    Mas, o que eu encontro de MUITOOO fantástico em você Luis: você sabe se permitir a suavidade do doce e da acolhedora compreensão no momento certo, e sabe também mostrar ao leitor o picante da pimenta numa dose bem proporcional e que reverbera como um gol olímpico. Obrigada por existir e muito obrigada por tudo o que você tem feito pelos leitores. Mil vezes, parabéns! Beijocas mil!

  6. alexandre

    Edmilson seu malaaaaaaaaaaaaaaa!
    ótimo texto…feliz por ter vindo parar aqui,Obrigado!!!

  7. Luis Pellegrini Autor do post

    Cara Clene, pelo que consegui entender nesses anos todos de acrobacias existenciais, quem melhor soube ensinar como viver no Caminho do Meio e tirar o melhor proveito dele é um senhor que viveu há cerca de 2600 anos, na Índia e no Nepal, e que se chamava Gautama Buda. Todas as regras, setas e indicações necessárias estão no budismo. Estão também em outros grandes sistemas de sabedoria. Mas, em minha modesta opinião, em nenhuma delas de modo tão claro, lógico e prático como no budismo.
    E agora você talvez esteja com vontade de perguntar: E você, Luis, é budista? A resposta, se eu fosse dá-la, seria longa. Um dia, talvez, eu ainda tente da-la, inclusive para mim mesmo. Por enquanto, amiga, sou humildemente obrigado a reconhecer que ainda me encontro excessivamente ligado a descomedimentos para poder afirmar que estou no Caminho do Meio. Beijoca.

  8. Clene Salles

    Luis, Ai, ai, ai… Como alcançar o caminho do meio? Uff!!! Quando eu penso, caramba existe um sistema todo requintado neurocelular no cérebro e de repente uma palavra escrita ou falada muda tudo. Bem, se uma vírgula pode mudar o sentido da mensagem a ser emitida… Você sabe, sou uma pessoa de origem muito simples. Há alguns dias fui solicitada para recontar, copydeskar clássicos antigos – os originais – da literatura infantil, entre eles Chapeuzinho Vermelho, João e o Pé de Feijão… Se quiser, fique a vontade, ria bastante de mim, mas a verdade é uma só: tive muitos pesadelos, e várias aflições ao me deparar com aquelas histórias. Meu lado criativo venceu as angústias e encontrei soluções. MAs de fato fiquei pensando: se eu tivesse sido como qualquer criança deveria viver, e estudar ou ouvir aquelas histórias repetidas vezes, acho que não teria a personalidade que tenho hoje. Não sabia nada daquilo destes clássicos infantis, porque cresci aprendendo a ler e escrever com outros temas. Qualquer dia te conto. Mas o fato é que eu pensei muito nas crianças que ouvem aquilo. Vejo o benefício/estrago até na Cinderela – como reflete nas mulheres. As vezes uma boa palavra machuca também, seja escrita ou falada. Mas dentro dos enigmas da vida, como adivinhar quando o cérebro está mais suscetível, frágil para ler e ouvir? Como descobrir o horário e o momento em que ele está forte o suficiente para ler e escutar determinadas coisas mais densas? Ah, o caminho do meio – por favor, me ensine a viver!

  9. Luis Pellegrini Autor do post

    Caro Edmilson, respeito sua posição, da mesma forma que respeito a do autor do texto. Pessoalmente acredito que a melhor posição está no meio: nem tudo do lado do politicamente correto, quando as coisas ficam mesmo chatérrimas; nem tudo do lado do politicamente incorreto, quando injustiças e agressões fatalmente acontecem. Abração.

  10. edmilson

    Não concordo com nada disso, nem acho que o politicamente correto seja errado. Conheço muita gente que teve sua auto-estima comprometida tanto na infância como na adolescência por chacotas e piadas iguais a estas que cita com tanta graça o autor do texto. Acho incoerente este texto com o do racismo neste mesmo blog. As diferenças e deficiências devem sim ser respeitadas ao custo de nossa evolução enquanto humanos, não vai ser por falta de humilhação e bulling que nosso poder criativo vai ser comprometido

  11. Romilda Raeder

    Pois é, Johnny: o brasileiro tem mania de copiar tudo de ruim que vem daquele paraíso da paranóia e do não ter mais o que fazer. Pena que as poucas coisas boas que há lá não são copiadas! O ‘politicamente correto’ é o MÁXIMO DA HIPOCRISIA e muita gente boa não se dá conta disto!

  12. tereza

    Luis, muito bom o artigo; realmente ficou muito chato… qual seria a origem dessa chatice, dificil entender, a consciência nos tornou mais rançosos ou preconceituosos pelo lado do avesso.
    bjks

  13. Margareth Félix

    Texto despojado e sem papas na língua. Gosto!
    Hoje em dia, para se expressar, as pessoas são cheias de dedos ou como dizem na minha terra: são cheias de nove-horas.
    Um abraço!

  14. Luis Pellegrini Autor do post

    Querida Maria Thereza, mando todas as fotos do Yoda que vc quiser. Mas soh a partir de domingo, amiga. Estou neste momento em Providenciales, no Caribe, para reportagem. Um resort incrivel chamado Amanyara. Perto de um outro onde, ha uns sete anos, por incrivel coincidencia, encontrei a Lili Guimaraes na praia. E tinhamos todos acabado de jantar na sua casa, MaRIA THEREZA, lEMBRA? vOLTO A sp NO DOMINGO. bEIJOCA