O mistério do esporte. A sabedoria oculta dos jogos

 

Por: Luis Pellegrini

Fogos de artifício marcam o início das Olimpíadas no Rio. Mas poucos sabem que os jogos atléticos como o futebol ou as corridas, ou até mesmo os jogos de salão como o xadrez ou de damas, ou os de adivinhação como o tarô ou o jogo de búzios, não são apenas passatempos feitos para divertir. Todo jogo carrega a sabedoria espiritual da cultura que o criou, e o significado da época histórica onde surgiu.

Jogo de reis, rei dos jogos. Um tabuleiro de xadrez, com todas as suas belas peças brancas e negras que se movimentam segundo regras e estratégias precisas, ou de damas (um jogo que do xadrez deriva), carrega milênios de tradições, conhecimentos esotéricos e símbolos rituais.

O xadrez, cujas origens precisas são desconhecidas, sabendo-se apenas que nasceu na Ásia em algum momento perdido da história, faz parte de um conjunto de jogos que atravessaram os séculos e chegaram até nós, trazendo testemunhos de civilizações, crenças e conhecimentos muito antigos. A tal ponto que, através do estudo do sentido e da lógica desses jogos, é possível conhecer os sistemas filosóficos, religiosos e mágicos que os produziram.

Para além do seu aspecto esportivo ou de puro divertimento, um jogo como o xadrez apresenta várias camadas de sentidos profundos. Na Índia antiga por exemplo, onde o xadrez era largamente praticado, um simbolismo mais evidente do jogo liga-se à estratégia guerreira conforme estudada e desenvolvida pela casta dos kshatrias, a parte da população indiana que, por tradição, dedica-se às questões militares das guerras e dos combates. O desenrolar do jogo é um combate entre peças negras e peças brancas, entre a sombra e a luz, entre os mitológicos titãs (asuras) e os deuses (devas). A lógica da estratégia guerreira do xadrez é a mesma que se observa na descrição das batalhas do Bagavad Gita, a grande epopeia bélica da literatura indiana. O que se aposta nessas batalhas é sempre a supremacia sobre o mundo. Seja ele o mundo objetivo de fora, ou o mundo subjetivo da interioridade do ser humano.

O jogo de fora espelha o jogo de dentro

Quando se examina o importante simbolismo do jogo de xadrez é preciso considerar, de um lado, o jogo propriamente dito, e do outro, o tabuleiro sobre o qual ele se desenrola. O tabuleiro é uma representação do mundo manifestado, tecido de sombra e de luz, em que se alternam e equilibram as forças iguais e contrárias do yin e do yang.

Na sua forma elementar o tabuleiro é uma mandala (símbolo da existência) quaternária simples, representando o plano existencial da terra, o lugar onde as coisas e os seres criados se manifestam, onde tudo nasce, cresce,  morre e renasce. O tabuleiro normal tem 64 casas, e esse número também não foi escolhido arbitrariamente. 64, na metafísica indiana, é o número da realização da unidade cósmica. O tabuleiro é considerado uma representação da Vastupurushamandala, um esquema cósmico de certa forma análogo ao número de ouro de Pitágoras.

Entendido como representação sintética dos processos cósmicos criativos, esse esquema é utilizado para a construção dos templos da Índia, bem como para o estudo dos ritmos e dos ciclos cósmicos. Significa que o mundo é construído como um tabuleiro de xadrez, e as coisas que acontecem no mundo respeitam leis muito análogas às leis que regem os movimentos das peças do jogo de xadrez. Sem esquecer que, como toda mandala é um símbolo da existência, e sendo o tabuleiro uma mandala, a luta de forças e tendências que se processa na sua superfície representa também todas as lutas, todos os choques de forças, todas as combinações de tendências  que acontecem no íntimo de cada um de nós.

Além disso, o jogo põe em ação essencialmente a inteligência e o rigor lógico. Quando joga, o praticante de xadrez participa também da inteligência universal (que em sânscrito se diz Viraj) da qual a Vastupurushamandala é também um símbolo. A dominação do mundo pela participação na Viraj é uma arte de guerreiro: é a arte dos reis.

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O xadrez é o jogo dos reis

O xadrez, por tais razões, é também chamado de “jogo de reis”, bem como de “rei dos jogos”. Ele simboliza a tomada de controle não só sobre adversários ou sobre um território, mas também sobre si mesmo, sobre o próprio eu, porquanto a divisão interior do psiquismo humano em áreas luminosas e áreas escuras é igualmente o cenário de um combate.

Jogos como o xadrez sempre despertaram o interesse dos ocultistas por uma razão muito simples: como eles são estruturados a partir do conhecimento e da utilização de leis universais, como aquela da Vastupurushamandala, isso significa que conhecê-los é conhecer essas leis, e praticá-los é saber o que acontece quando essas leis são postas em movimento. Um jogo é uma representação do mundo e dos processos do mundo; quando se conhece um processo, pode-se saber de antemão aonde ele vai levar. Por isso, muitas vezes os jogos são utilizados também como sistemas de adivinhação.

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Papus, ocultista hispano-francês (1865-1916) concluiu que o tarô foi a origem comum da maior parte dos jogos de salão que conhecemos. Ele explicava  que fixando-se os personagens do baralho num tabuleiro dividido em casas pretas e brancas, tem-se um perfeito jogo de xadrez. E, ao se fazer uma espiral com as cartas dos naipes de espadas, paus, ouros e copas, e em seguida sacar os números como se fosse um jogo de dados, pode-se disputar o velho jogo da glória. As relações são corretas. O único equívoco de Papus é que o xadrez é muito mais antigo do que o tarô, e portanto, é este último que provavelmente deriva do primeiro.

O nome atual do xadrez parece derivar da palavra persa xá, que significa rei ou chefe; por isso, durante muito tempo acreditou-se que o jogo fosse invenção persa. Verificou-se depois que ele é muito mais antigo do que a civilização persa. O próprio Platão refere-se em seus escritos que, durante a época de Moisés, havia um passatempo semelhante ao xadrez, com o nome hebreu de Ithkakit. Há uma tradição cabalista segundo a qual foi o próprio Moisés a criá-lo.

Mas uma das versões mais aceitas sobre as origens do xadrez como hoje o conhecemos vai ao século sexto de nossa era. Conta que Sissa, monge brâmane encarregado da educação do jovem rajá Chech-Rama, inventou o jogo para demonstrar ao aluno que um rei não é capaz de nada sem a ajuda dos seus súditos. E, além disso, para ensiná-lo que, numa sociedade organizada, cada um tem uma função específica que deve ser respeitada. Não corresponder às possibilidades oferecidas por sua função, não tentar desfrutar ao máximo dela, ou então ultrapassar os limites dessa função, quebrando assim uma regra do jogo, significa derrota certa. Respeitar as regras, e aplicar-se ao combate com inteligência, coragem e disposição, é atitude que pode conduzir à vitória desde que o adversário não seja mais forte.

Nosso xadrez moderno é assim, provavelmente, filho do Schatransch indiano (Tschaturanga, em sânscrito), embora suas peças sejam um tanto diferentes. Esse jogo inclui oito soldados de infantaria, dois carros, dois cavaleiros, dois elefantes, um general e um rei – enquanto o nosso xadrez consiste em oito peões (soldados), duas torres, dois bispos, dois cavalos, rainha e rei.

Vitória ou derrota não acontecem por acaso

Embora considerado o mais nobre e refinado dos jogos de inteligência, o xadrez não é o único deles. Quase todas as culturas da antiguidade inventaram os seus próprios sistemas lúdicos baseados, todos eles, na percepção de que no universo existe uma lógica inelutável, de tipo matemático, que rege todos os seus fenômenos. O próprio jogo de dados, na aparência um simples passatempo em que vitória ou derrota acontecem por acaso, baseia-se na verdade na antiga ciência dos números. A numerologia metafísica, segundo a qual cada cifra numérica corresponde a uma precisa lei cósmica.

O jogo do astrágalo (ossinho situado na articulação da perna do boi ou do carneiro), por exemplo, é o precursor do jogo de dados e nasceu na Grécia. No começo, servia apenas aos processos divinatórios: “Perto do rio Duraico”, escrevia Pausânidas, “existe uma caverna; nessa caverna vive um oráculo que conhece o futuro através de um tabuleiro de astrágalos”.

O astrágalo teve muita popularidade no mundo antigo, depois que perdeu seu caráter sagrado. O jogador atirava quatro ossinhos sobre a mesa. A jogada mais favorável (chamada “de Vênus”) consistia em obter quatro pontos diferentes. Os pontos dependiam da posição em que os ossinhos caiam.

Os verdadeiros dados, porém, nasceram no Egito. Platão revela isso em sua obra Fédon: “Ouvi dizer que próximo a Murratis, no Egito, existe um dos mais antigos deuses, a quem foi consagrada a ave íbis, cujo nome é Thot, e que foi o primeiro a descobrir os números, o cálculo, a geometria, a astronomia e os dados”.

Os romanos adaptaram quase todos os jogos egípcios e gregos; e sua paixão por jogos transparece não só nos antigos documentos, como nas ruínas arqueológicas. Em certos templos de Roma, existem ainda gravados, sobre os ladrilhos do chão, riscos em forma de círculos ou quadrados, atravessados por diagonais. Era o jogo de damas da época.

Mas foram também os gregos que, graças a seus conhecimentos, criaram certas regras matemáticas que permitem ganhar no jogo de damas. O segredo era guardado pelos discípulos de Pitágoras; para eles, as relações matemáticas, os números e suas leis proporcionavam a explicação do universo. Conhecê-los significa conhecer o mundo.

Um velho jogo chinês, o wei-chi, ou “jogo do go”, nasceu provavelmente na Mongólia sete séculos antes da nossa era, e nas últimas décadas tem conquistado  milhares de adeptos principalmente na Europa e nos Estados Unidos. Sua originalidade consiste na aplicação de técnicas que fazem alternar a análise e a síntese, o lugar (uma parte determinada do tabuleiro) e a totalidade (todo o tabuleiro). Ainda na China existe uma espécie de jogo de damas muito popular, o tiao-ki, que se baseia nas oposições yang e yin, a base da filosofia taoísta. Os coreanos tem um jogo equivalente,o kono. O mesmo acontece com os muçulmanos, e seu jogo chama-se al-qirq.

Búzios, um jogo altamente complexo

É curioso que também os índios americanos conheçam um passatempo baseado no jogo das oposições: chama-se serpente-voadora. E, no Brasil e em outros países americanos onde se implantaram religiões africanas, pratica-se o jogo de búzios, um sistema altamente complexo utilizado para a adivinhação e também para a comunicação com divindades do panteão afro-americano.

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Nenhum jogo, seja ele de salão como o xadrez, o dominó, dados ou cartas, ou uma competição atlética como o futebol, o tênis ou a corrida de obstáculos, é, no seu significado mais essencial, um simples passatempo ou um esporte. O jogo é fundamentalmente um símbolo de luta, luta contra a morte (jogos funerários), contra os elementos (jogos agrários), contra as forças hostis (jogos guerreiros), contra si mesmo (contra o medo, as fraquezas, as dúvidas etc).

Os jogos estão, na sua origem, ligados ao sagrado, mesmo que seus praticantes contemporâneos não tenham consciência disso. Entre os gregos e romanos  os jogos eram cerimônias periódicas que acompanhavam determinadas festas religiosas e no curso das quais se enfrentavam, em diferentes provas, de um lado, atletas e acrobatas, de outro, músicos e declamadores. Cada cidade organizava seus jogos próprios por ocasião das festas. As cidades aliadas participam de jogos comuns. O jogo aparece, então, como um rito social, que exprime e reforça, à maneira de um símbolo, a unidade do grupo, cujas oposições internas se exteriorizam e se resolvem precisamente nessas manifestações lúdicas.

A importância sociopsicológica dos grandes jogos públicos era muito grande: “foi em torno deles que se cristalizaram o sentimento cívico e o sentimento nacional. Foram, para os habitantes de uma mesma cidade, para os filhos de uma mesma raça… o laço que lhes recordava seus interesses comuns, sua origem comum. Tinham suas incidências na vida privada e na vida pública. Alimentavam em todos a idéia de que a educação  física deve ser ativada pelo treinamento dos moços nos centros de ginástica; mas eram também, para os membros dispersos de uma mesma família étnica, a ocasião de se reencontrarem na exaltação de um ideal que os distinguia dos bárbaros. Para celebrar esse ideal, calavam-se as rivalidades e ódios que dividiam as cidades” (Devambez, Dicionário da civilização grega).

Durante o período dos jogos, não havia guerra, nem execuções capitais, nem penhora judicial; era a trégua total.

Infelizmente, perdeu-se hoje o simbolismo psicológico e espiritual de muitos jogos antigos que ainda são praticados: o pau-de-sebo ou mastro-de-cocanha está ligado aos mitos da conquista do céu; o futebol, à disputa do globo solar entre duas fratrias antagonistas; empinar papagaios ou pipas representava, no Extremo Oriente, deixar voar a alma do proprietário, o qual permanecendo, embora, no solo, continuava magicamente ligado a ela pelo fio e podia, através desse elemento de ligação, desfrutar da liberdade que sua alma experimentava. A amarelinha representava provavelmente o labirinto onde o iniciado se perdia no primeiro instante. Todos esses jogos e brincadeiras não deixam de ter, ainda hoje, uma razão de ser; deixaram de ser sagrados mas ainda desempenham papel psicológico e social dos mais importantes como símbolos agonísticos e pedagógicos.

Jogos não são apenas passatempos

Por tais razões continuam a ser praticados, e novos jogos continuam a ser inventados. Porque os jogos apresentam os mais variados aspectos segundo as necessidades de cada época. Cirlot, em seu Dicionário de Símbolos, também afirma que os jogos não são apenas passatempos. Explica que eles podem ser iniciáticos, didáticos, miméticos, competitivos. E comenta que “o sucesso, neste final de século vinte, dos jogos eletrônicos, anuncia o advento de uma nova forma de inteligência mais apta a compreender as proezas da tecnologia que as finuras da retórica. Os jogos predominantes numa época simbolizam os seus interesses principais. Exemplo: o monopólio, os jogos de negócio e de bolsa de valores, o Master Mind, o cubo de Rubik, etc. Refletem seu tempo: anunciam a era eletrônica e telemática, matemática, mecânica e robótica”. São arautos dos deuses de um futuro que já encosta no presente. Continuam a esconder sabedorias que vão além das simples aparências. Servem ainda para transmitir ensinamentos, para desenvolver o poder de reflexão da mente, e para ensinar que o jogo da vida do homem está indissoluvelmente ligado ao jogo da existência do mundo.

Originally posted 2016-08-04 16:32:44.

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