Bioprocessamento. A urgência de criarmos animais livres de antibióticos

 

 A ONU prevê que a resistência antimicrobiana será o nosso maior assassino até 2050. Descubra como o uso de antibióticos em produtos animais, da alimentação do gado aos animais domésticos, tem aumentado no mundo todo, e como podemos usar o bom senso para evitar uma epidemia.

Vídeo: TED Ideas Worth Spreading

Por: Leon Marchal (*)

Tradução: Simone Gumier. Revisão Maricene Crus

A ONU prevê que a resistência antimicrobiana será a maior causa de mortes até 2050. “Isso deveria realmente assustar a todos nós”, diz o engenheiro de bioprocessos, Leon Marchal. Ele trabalha em uma solução urgentemente necessária: transformar a indústria alimentícia animal no mundo todo. O uso de antibióticos em produtos animais, da alimentação do gado aos animais domésticos, tem aumentado no mundo todo, e precisamos com urgência usar o bom senso para evitar uma epidemia.

Vídeo:

 

Tradução integral da palestra de Leon Marchal sobre bioprocessamento:

Houve um tempo em que simples infecções eram letais. Mas hoje, graças à grande variedade de antibióticos, isso é coisa do passado. Mas, na verdade, devo dizer “era”, porque hoje usamos tantos antibióticos que as bactérias que causam estas infecções estão se tornando resistentes. E isso deveria realmente assustar a nós todos.

Se não mudarmos o nosso comportamento e diminuirmos o uso de antibióticos, a ONU prevê que até 2050 a resistência antimicrobiana terá se tornado nosso maior assassino. Então, devemos começar a agir. Mas “onde começar?” é uma pergunta interessante, porque nós, seres humanos, não somos os únicos que usam antibióticos. No mundo todo, de 50% a 80% de todos os antibióticos são usados por animais. Nem todos eles representam perigo à nossa saúde, mas se não controlarmos o seu uso agora, os seres humanos e os animais enfrentarão um futuro pavoroso.

Leon Marchal

Para começar, vamos falar sobre como viemos parar aqui. O início do uso em grande escala de antibióticos se deu nos anos 1950. No Ocidente, as pessoas prosperavam e queriam consumir mais proteína animal. Quando os animais adoeciam, eram tratados com antibióticos; assim, eles não morriam e continuavam a crescer. Mas logo descobriu-se que doses pequenas e regulares de antibióticos na alimentação mantinham os animais saudáveis, faziam com que crescessem mais rápido e precisassem de menos alimento. Então, os antibióticos funcionavam bem, muito bem, na verdade. E, com o aumento da produção animal, o uso de antibióticos também disparou no mundo todo. Infelizmente, a resistência a eles também aumentou.

O seu médico lhe diz para tomar a caixa inteira de antibióticos porque, se você diminuir a dose, não matará todas as bactérias. E aquelas que sobreviverem criarão resistência ao antibiótico. Ocorre o mesmo quando damos doses pequenas regulares de antibióticos aos animais: algumas bactérias morrem, mas nem todas. Se isso for ampliado por toda uma indústria, vocês entenderão que, acidentalmente, criaremos um grande reservatório de bactérias resistentes a antibióticos.

Mas sinto ter que dizer a vocês que o problema não para por aí. Vocês sabem quem mais ingere esses antibióticos? Félix, seu gato, e Totó, seu cachorro.

Os animais de estimação estão entre os maiores consumidores e eles usam antibióticos que são essenciais para a saúde humana. Combinem isso ao fato do quanto vivemos próximos de nossos amigos animais e entenderão o risco de adquirirmos deles bactérias resistentes a antibióticos.

Mas como as bactérias resistentes a antibióticos presentes em animais de fazendas nos afetam? Vou dar a vocês um exemplo baseado em dados. Os níveis de resistência da bactéria salmonela em porcos na Europa contra diferentes tipos de antibióticos variam de menos de 1% a 60%. O que significa que, em muitos casos, tal antibiótico não conseguirá mais matar a salmonela. E houve uma alta correlação entre a salmonela resistente a antibióticos nos suínos e no produto final, seja costeleta de porco, costelas ou carne moída.

Felizmente, menos de 1% de toda carne crua, peixes ou ovos contém salmonela. E só representam um perigo quando não são bem preparados. Entretanto, há mais de 100 mil casos de salmonela em humanos na União Europeia e mais de 1 milhão nos EUA. Nos EUA, tal fato leva a 23 mil casos de hospitalizações e a 450 mortes a cada ano. Com o aumento de salmonelas resistentes a antibióticos, é provável que essa taxa de mortalidade cresça.

Mas o problema não está apenas no que consumimos. Neste ano, mais de 100 pessoas foram infectadas por um tipo de salmonela multirresistente a drogas depois de alimentarem seus cães com orelhas de porcos. Portanto, devemos realmente reduzir o uso de antibióticos na produção animal. Por sorte, isso está começando a acontecer.

A União Europeia foi a primeira a banir o uso de pequenas doses na alimentação. Desde 1999, gradualmente, a quantidade de diferentes tipos de antibióticos permitidos tem sido reduzida e, em 2006, eles foram completamente banidos. Os antibióticos só eram permitidos quando um veterinário determinava que o animal estava doente.

Que legal, não? Problema resolvido! Não, esperem! Não foi tão rápido assim. Assim que começou o programa de redução, logo se descobriu que os antibióticos eram a máscara perfeita para encobrir muitas práticas ilícitas no campo. Cada vez mais animais adoeciam e precisavam de antibióticos. Então, em vez do uso diminuir, na verdade, aumentou. Obviamente, aquele não era o caminho a ser seguido. Mas, por sorte, não era o fim da história. Todo o setor agrícola europeu iniciou uma jornada, da qual acho que todos podem aprender uma lição.

Foi aí que entrei em cena. Fui trabalhar numa grande empresa europeia de rações compostas, dessas que proporcionam ao fazendeiro a dieta completa, bem como aconselhamento sobre o melhor modo de criação dos animais da fazenda. Eu estava muito motivado por trabalhar com meus colegas, com os veterinários e, obviamente, com os fazendeiros para descobrirmos como manter os animais saudáveis, sem antibióticos.

É preciso três coisas para que a criação fique livre de antibióticos. Vou mostrar a vocês como funciona. Para começar, e isso parece muito óbvio, a higiene é o ponto de partida. A melhor limpeza dos estábulos e do encanamento de água potável dificultam a entrada e a disseminação de doenças. Isso tudo é muito importante, mas a parte em que eu estava mais interessado era alimentar bem os animais, fornecendo uma melhor nutrição.

Uma dieta balanceada é importante. Reflitam: quando não consumimos fibras suficientes, não nos sentimos bem. Uma parte do alimento que consumimos não é digerida, mas é fermentada no intestino grosso por bactérias. Assim, alimentamos esses micróbios com uma parte do que comemos. Inicialmente, a maioria dos animais jovens tinha dietas pobres em fibras, ricas em amido e proteína, finamente moídas e facilmente digestíveis. Seria o equivalente a uma dieta de pão de hambúrguer, arroz, waffles e barras de proteína. Transformamos isso em uma dieta com menor teor de proteínas, mais rica em fibras, mais integral. É como fazer dieta e comer cereais integrais, salada com carne ou feijões. Isso tornou a flora bacteriana do intestino dos animais mais benéfica e reduziu a chance de desenvolver patógenos.

Vocês devem estar surpresos, mas a composição da dieta, bem como sua estrutura, são importantes. O simples fato de que a mesma dieta é mais integral levará a um trato digestivo melhor desenvolvido e, portanto, a um animal mais saudável.

Mas a melhor parte é que o fazendeiros começaram a apostar nisso, também. Diferente de outras partes do mundo, fazendeiros europeus ocidentais ainda tomam suas decisões de maneira independente: de quem compram a ração e para quem vendem os animais. Então, no final, o que você está vendendo, reflete a real necessidade local desses fazendeiros. Por exemplo, a quantidade de proteína em dietas de leitões em países que são muito mais vigilantes quanto à redução de antibióticos, como Alemanha e Holanda, já era de 10% a 15% menor que em lugares como no Reino Unido, cuja implementação foi mais lenta.

Embora melhores condições de higiene e de nutrição ajudem, não impedirão totalmente que adoeçamos. Então, é preciso fazer mais. E é por isso que nos voltamos para o microbioma. Tornar a água mais ácida ajuda a criar um ambiente que propicia bactérias mais benéficas e inibe os patógenos. Tal como o alimento fermentado, seja iogurte, chucrute ou salame, todos eles se deterioram menos rapidamente também.

Com as técnicas modernas de hoje, como as baseadas em testes de DNA, podemos ver que há muito mais micro-organismos diferentes presentes. E esse ecossistema, denominado microbioma, é muito mais complexo. Acontece que há cerca de oito vezes mais micro-organismos em nossos intestinos do que células de tecidos no nosso corpo. E o impacto não é menor nos animais. Então, se quisermos criar animais livres de antibióticos, temos que torná-los mais robustos. Assim, quando ficarem doentes, os animais serão muito mais resistentes. Essa abordagem tripartida da “Nutribiosis” que envolve o hospedeiro, a nutrição e o microbioma, é o caminho a ser seguido.

A prática de criar animais com o uso de antibióticos ou com uma dieta que cause o uso deles é um pouco mais barata para os fazendeiros. No final, estamos falando de um pequeno percentual dos consumidores. É bastante acessível para as classes média e alta da população mundial. E é um preço muito pequeno a se pagar quando nossa saúde ou a dos nossos entes queridos está em questão.

Então, qual direção acham que devemos tomar? Vamos permitir que a resistência antimicrobiana se torne nosso maior assassino, a um custo financeiro e pessoal alto? Ou vamos, além de reduzir o uso humano de antibióticos, realmente começar a abraçar a criação animal livre de antibióticos? Para mim, a escolha é muita óbvia. Mas, para que isso aconteça, temos que estabelecer metas de redução e nos assegurar de que elas sejam seguidas no mundo todo. Pois os fazendeiros competem entre si. E em um país, bloco comercial ou mercado global, os custos são muito importantes. Além disso, temos que ser realistas: os fazendeiros precisam ter os meios de investir mais em melhor gestão e em melhor alimentação para atingir essa redução. E além das questões legais, o mercado pode atuar oferecendo produtos reduzidos ou isentos de antibióticos. Com a crescente conscientização do consumidor, essas forças de mercado crescerão.

Tudo sobre o que eu falei parece ser importante para nós. Mas, e para os animais? Vejam, a vida deles também vai melhorar: mais saúde, menos estresse, vida feliz. Então, agora vocês sabem. Temos o conhecimento de como produzir carne, ovos e leite com ou sem pequenas doses de antibióticos, e digo que é um pequeno preço a se pagar para evitarmos um futuro no qual as infecções por bactérias se tornarão, repito, nosso maior assassino.

(*) Leon Marchal é engenheiro em bioprocessamento (a atividade que utiliza células vivas ou componentes de sua maquinaria bioquímica para fazer o que normalmente fazem: sintetizar produtos, degradar substâncias e produzir energia).

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