Uberização do trabalho. Sonho ou pesadelo?

 

O progresso tecnológico tem potencial para nos libertar de condições de trabalho degradantes e desumanas. Mas para que assim seja uma coisa é necessária: sermos capazes de romper de vez com a ortodoxia neoliberal.

 

Por: Peter Fleming (*)

Fonte: Jornal The Guardian – Londres

Que será mais fácil imaginar? Um cenário em que as crianças nascidas agora tenham uma esperança de vida até aos 100 anos mesmo ingerindo comida de plástico? Ou um mundo onde se trabalhe menos graças aos progressos tecnológicos?

Graças aos progressos da medicina e da tecnologia, uma criança que tenha hoje 2 anos poderá viver 120 e trabalhar até aos 100, antevê o futurólogo Rohit Talwar, líder da empresa Fast Future, especializada em prognósticos para o futuro. Cada pessoa terá cerca de quatro dezenas de empregos no decurso da sua vida profissional, na sua maioria em multi-atividade, e experimentará mais de dez carreiras. Segundo Talwar, os professores já deveriam estar ajudando os alunos a adquirirem novas competências, relata o jornal The Times. Deveriam, também, formá-los em meditação, a fim de possam ser mais descontraídos e produtivos, e ensiná-los a gerir o estresse, explicando-lhes como o sono melhora o rendimento laboral…

Será a uberização da mão de obra inevitável (aplicação de regimes de trabalho precários e não regulamentados como na plataforma de táxis americana)? Já há peritos recomendando que as escolas ensinem às crianças os princípios básicos do que acham que o futuro irá trazer: aumento da precariedade, salários baixos, jornadas de trabalho intermináveis…

Uma das maiores conquistas daquilo que alguns designam como “realismo capitalista” é fazer com que a suposta racionalidade econômica pareça irrefutável. De repente, as decisões tomadas por indivíduos e grupos tão falíveis quanto animados por motivações políticas ganham uma aura de inevitabilidade e predestinação. Por que?

Vida útil de 65 anos

Porque, segundo eles, é impossível travar a marcha do progresso… Exemplo desta ideologia são as curiosas previsões feitas pelo futurólogo Rohit Talwar sobre os meios de subsistência das gerações vindouras. Na sua opinião, as crianças de hoje viverão mais tempo, podendo trabalhar bem para lá da idade atual de aposentadoria, pelo menos 65 anos. Uma vida tão longa que alguns centenários bem conservados até poderiam continuar a ir todos os dias ao escritório.

Rohit Talwar prevê também o desaparecimento de várias profissões que damos como eternas. A tecnologia irá se intrometer em tarefas hoje consideradas impossíveis de automatizar, casos do jornalismo e da educação. Isto obrigará as crianças a se adaptarem. Provavelmente nunca saberão o que é um emprego estável e andarão sempre de um pequeno trabalho para outro, mudando constantemente de uniforme.

“Poderemos ser motoristas do Uber durante parte do dia, ganhar algum dinheiro alugando um quarto do nosso apartamento no Airbnb e talvez necessitemos de alugar espaço num armazém da Amazon para guardar mercadorias ou a tralha doméstica. Eis alguns exemplos da “economia de partilha” apresentados por Rohit Talwar.

Aqui está um conceito de economia que seria aplaudido até pelo conservador George Osborne, antigo ministro britânico das Finanças (no tempo de Cameron). O que o futurólogo Talwar prevê é uma simples extensão das tendências atuais de degradação do trabalho pregadas pela ortodoxia neoliberal.

Por exemplo, os contratos de zero horas (sem tempo de trabalho garantido nem salário mínimo) seguem o modelo da uberização, onde o emprego é necessariamente precário e responde primordialmente aos interesses imediatos do empregador. A verdade é que as pessoas associadas à categoria de “desempregado” ou “trabalhador independente” proletarizaram toda uma geração.

Segundo alguns estudos, no mundo mais desenvolvido, os falsos trabalhadores independentes, ou seja os indivíduos considerados formalmente empreendedores privados tiveram uma baixa de faturamento (rendimentos) de 22% desde 2009. Já o número de pessoas que trabalha para além da idade normal de aposentadoria duplicou entre 1993 e 2012. E não é por terem descoberto as alegrias do trabalho, mas porque os seus salários de aposentados não lhes garantirem a sobrevivência.

Ambições políticas e partidárias

Nada disto faz parte da ordem natural das coisas. Estes fenômenos deploráveis são o resultado de decisões humanas e são facilmente reversíveis. Acho, portanto, problemáticas as previsões sobre o futuro do emprego como as avançadas por Rohit Talwar. É preciso contestar, alto e bom som, esta forma de projetar ambições políticas e partidárias sobre um futuro que ainda está em aberto. Poderão vir a pesar sobre os menos capazes de se defenderem, ou seja, sobre os nossos filhos. Ora, pelo contrário, há muito que se fala no papel potencialmente libertador da tecnologia. Em 1930, o economista John Maynard Keynes previu que os britânicos estariam um dia libertos do trabalho.

Em “Perspectivas Econômicas para as nossas Crianças”, ele prevê para as gerações futuras uma idade de lazer e uma semana de trabalho de 15 horas. Segundo Keynes, a automatização exponencial e a subida do nível de vida seriam tais que, num futuro longínquo, em 2015, os afortunados habitantes do Reino Unido olhariam com comiseração para as gerações anteriores, obrigadas a ter um “emprego” e “trabalhar toda a semana”.

Quando observamos a situação atual, percebemos que Keynes deu provas de sabedoria ao fazer apenas uma pequena incursão na futurologia, para depois se dedicar inteiramente à sua verdadeira profissão de economista… Estamos numa encruzilhada. Irá a tecnologia servir para consolidar a sociedade atual centrada no trabalho, confiando os nossos filhos (e depois os netos) a uma massa crescente de “pessoas descartáveis” sem qualquer papel social ou econômico? Ou será colocada ao serviço de uma sociedade diferente? Uma sociedade que liberte tempo em vez de o desperdiçar. Que não nos obrigue a aguardar na sala de espera de uma agência de emprego para depois ganharmos miseravelmente a vida numa “carreira de portfólio” (carreira profissional com vários empregos simultâneos).

Afinal, qual é a verdadeira finalidade da economia?

Estamos finalmente percebendo que o trabalho já não é um imperativo de sobrevivência biológica. Enviar mensagens de correio eletrônico todo o dia confinado em um escritório nada tem que ver com a atividade de caçador-coletor de que dependia a sobrevivência dos nossos antepassados. É uma invenção humana e não foi gravada na pedra.

Façamos, também nós, alguma futurologia. Em 2040, após o paradigma econômico neoliberal se ter tornado de tal forma inoperante que implodiu sob o seu próprio peso, a questão da finalidade da economia voltou a colocar-se pela primeira vez em décadas. Que necessidades humanas têm de ser satisfeitas? Que objetivos coletivos queremos alcançar? Estas perguntas pareciam tão incongruentes que demorou até haver acordo quanto às respostas.

Tomou-se evidente que os enormes avanços tecnológicos deveriam beneficiar grande parte da vida do trabalhador. Ou seja, muitos dos empregos considerado vitais no velho modelo neoliberal tenderiam a desaparecer porque já não fariam falta à sociedade. Instituições mais democráticas e socialmente mais úteis seriam desenvolvidas e já não se colocaria a questão de o trabalho ocupar o lugar central na nossa vida. Ele seria reduzido à sua insignificância, dando espaço e tempo a novas atividades produtivas.

Neste cenário de futuro quem olhasse para o passado veria que a História era um pesadelo do qual estávamos tentando acordar.

(*) Professor de gestão empresarial na City University de Londres, Peter Fleming acaba de publicar o livro Mythology of Work: How Capitalism Persists Despite itself (Mitologia do trabalho ou como o capitalismo se perpetua apesar de si próprio).

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