Senhores do Mundo. A doutrina que está por trás do America First

 

A crença de ser a melhor nação do mundo, a mais justa, a que foi escolhida por Deus, foi a força que moveu a política expansionista norte-americana. Quando, em 1969, um astronauta fincou a bandeira norte-americana na Lua, seu gesto ainda espelhava essa crença que permanece viva no inconsciente coletivo do grande país do Norte.

Por: Luis Pellegrini

No século 19, a Doutrina do Destino Manifesto (em inglês: Manifest Destiny) era um conjunto de ideias extremamente difundido entre os habitantes dos Estados Unidos. Essa doutrina dizia que os colonizadores americanos deveriam expandir o seu domínio da América do Norte, até onde pudessem chegar. Expressava a crença de que o povo americano fora eleito por Deus para civilizar o continente, e se assentava sobre um conjunto (o “manifesto”) de três temas fundamentais: A virtude especial do povo americano e suas instituições; a missão dos Estados Unidos de redimir e refazer o oeste à imagem da América agrária; o destino irresistível – já que designado por Deus – para cumprir esse dever essencial de conquista e domínio.

American Progress (pintura de John Gast, feita em 1872). Retrata a conquista do Oeste. Na pintura, vê-se o avanço dos colonos, da direita para a esquerda, significando a progressiva tomada de posse dos territórios do Atlântico ao Pacífico. Frente às carroças e diligências, a ferrovia, os agricultores e os caçadores que avançam, fogem os bisões, os indígenas nativos, os lobos. O progresso é inexorável, inevitável, guiado pela virtude e pela convicção de agir em nome de Deus. A pintura está hoje na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.

Essa doutrina impulsionou todo o processo de colonização da América do Norte, e está muito bem representada na pintura American Progress, de John Gast, feita em 1872. O tema da pintura é justamente o “Destino Manifesto” da nação, na vertente interpretativa que foi chamada de “Espírito da Fronteira” (em inglês: Spirit of the Frontier). A obra mostra uma cena popular de pessoas se dirigindo para o Oeste, guiados e protegidos por uma entidade mística à qual foi dado o nome de Colúmbia (simbolizando a América vestida com uma toga romana de modo a representar o republicanismo clássico).

Ajudadas pelas mais modernas tecnologias existentes na época (armas de fogo, ferrovias, telégrafo, etc) tais hordas colonizadoras pouco a pouco expulsaram e eliminaram do seu caminho tudo aquilo que, na época, era considerado obstáculo perigoso à expansão (indígenas, bisões, lobos, etc). É importante observar que Colúmbia, no quadro de John Gast, traz consigo a “luz” do Sol nascente, e com ela ilumina os territórios conquistados à medida que avança em direção ao oeste ainda envolvido pela obscuridade.

Como os cruzados medievais, os americanos justificaram os massacres que perpetraram como “missões divinas”. Na foto, a atriz Hazel Down (1891-1988) posa vestida com a bandeira americana.

A cena, e tudo aquilo que ela representa, permanece profundamente gravada no inconsciente coletivo dos norte-americanos. É nessa doutrina que tem raízes a “America First”, referindo-se a uma política externa nos Estados Unidos que enfatiza o nacionalismo americano, o nacionalismo econômico e o unilateralismo, na rejeição de políticas internacionalistas. É a atual política oficial da administração do presidente Donald Trump.

Missão divina

Como diz a jornalista italiana Maria Leonarda Leone, na vida o importante é estar convencido de alguma coisa, e os norte-americanos sempre estiveram convencidos da sua “missão divina”. Convencidos, como disse um século atrás o presidente Woodrow Wilson, de ser “a nação mais justa, mais progressista, mais honrável e mais iluminada do mundo”. Convencidos de serem portadores de uma ideologia boa e sadia; convencidos de dever exportar para o mundo todo a sua própria ideia de democracia. Diz Maria Eduarda Leone, “com estes e outros pressupostos similares, há pelo menos cem anos os Estados Unidos dominam a cena mundial. Porque é isso que, desde as suas origens, eles são: um império”.

Livres e autodeterminados: os primeiros a se definirem assim foram, em 1787, os “pais fundadores” dos Estados Unidos, seguidos, um quarto de século depois, por uma outra voz ilustre, Thomas Jefferson. Segundo ele, que foi o terceiro presidente dos Estados Unidos, ao expandir o seu domínio para todo o território da América do Norte os americanos estavam criando um “império da liberdade”.

Maria Leonarda explica que tudo começou quase dois séculos antes, no início do século 17, “quando especuladores londrinos, católicos, puritanos, quakers e membros de outras seitas cristãs começaram a chegar à América do Norte provenientes da Inglaterra. Mulheres com toucas e coifas apertadas, homens com roupas escuras, todos extremamente determinados, fundaram passo a passo as 13 colônias que, no final daquele século, pertenciam à Inglaterra. Em 1783, sete anos após a Declaração de Independência, conseguiram se livrar definitivamente das amarras que os mantinham ligados à mãe pátria.”

Fotografia (ao redor de 1870): um montanha de crânios de bisão, para serem usados como fertilizantes agrícolas.

Para muitos historiadores modernos, no entanto, a própria guerra pela independência já seria uma primeira grande expressão da vontade imperial dos Estados Unidos. Segundo essa leitura da história, os colonos queriam se separar da Grã-Bretanha porque, contrariando as ordens do rei, George III, queriam criar assentamentos nas terras situadas a noroeste. A região compreendida entre as cadeias montanhosas dos Allegheny-Apalaches e o rio Mississippi era habitada por nativos americanos muito aguerridos, e os ingleses, que tinham acabado de concluir a guerra dos sete anos com a França, não queriam se empenhar em um outro conflito. “A guerra de 1775-1783 não teria sido, portanto, uma guerra pela independência, mas sim pela conquista de mais territórios na América”, afirma o historiador italiano Stefano Luconi: “Como um tipo de pecado original, esse desejo expansionista caracterizou toda a política exterior dos Estados Unidos”.

De Leste a Oeste: uma estação ferroviária nas Montanhas Rochosas, em 1900. Já em 1869 podia-se atravessar toda a América de trem.

Os indígenas norte-americanos pagaram a conta dessa marcha irrefreável em direção ao oeste. Quando ela finalmente terminou, nas praias do oceano Pacífico, os norte-americanos já não tinham uma fronteira a ser conquistada e ultrapassada. Mas o gosto da vitória territorial agora estava profundamente arraigado em suas almas inundadas pelo sentimento do destino manifesto. Que fazer? “A coisa mais óbvia, naturalmente”, explica Maria Leonarda: “Transpor a fronteira mais à frente”. Segunda ela, nessa corrida infinita para o horizonte, passo a passo os norte-americanos alcançaram o espaço planetário, “guiados pelo espírito resoluto do capitão Achab, o caçador da baleia branca Moby Dick do romance de Herman Melville”.

A expansão continua

No século 19, o destino manifesto estava no apogeu: os norte-americanos prosseguiram na caça a novos território. Começaram pela Louisiana (1803), continuaram com a Flórida (1819), depois o Texas (1845) e o Oregon (1846), depois entraram no México (1846-1848) e em Cuba, teatro da guerra hispano-americana de 1898.

Corpos de índios americanos das nações Lakota Sioux atirados numa fossa comum depois do massacre de Wounded Knee, no Dakota do Sul (1890).

Ao mesmo tempo, crescia no país um sentimento de xenofobia que até hoje determina posturas grotescas como as do atual governo Trump no trato dos imigrantes ilegais. Para os historiadores, isso deriva diretamente da influência exercida desde o início pelo colonizadores ligados a seitas cristãs, notadamente os puritanos. “Antes de desembarcar no litoral de Massachusetts em 1630, o líder puritano John Winthrop incitou seus correligionários a edificar no Novo Mundo uma “cidade sobre a colina”, ou seja a transformar o assentamento que estavam fundando em um exemplo no qual o resto da humanidade deveria se inspirar com vistas à própria regeneração espiritual”, conta o historiador Stefano Luconi: “Deus se tornou a autoridade à qual os norte-americanos recorreram para legitimar o seu expansionismo”.

A nova fronteira: o astronauta Buzz Aldrin (Apollo 11) saúda a bandeira norte-americana plantada no solo lunar, em 21 de julho 1969.

Uma missão em nome de Deus

Assim, os americanos justificaram a guerra que lhes permitiu tomar do México toda a sua região setentrional (os atuais estados da Califórnia, Utah, Novo México e Arizona) com a teoria do destino manifesto, segundo a qual a Divina Providência designou que o controle da América do Norte fosse deles, para que nela pudessem difundir a democracia e as suas próprias instituições. “Inclusive o extermínio das populações nativas, que no início do século 18 os puritanos consideravam criaturas demoníacas, além de estar ditado por razões de segurança se inspirava no convite bíblico para andar, se multiplicar e ocupar a Terra. Um princípio que serviu para legitimar o genocídio de inteiras populações pagãs”, ressalta Luconi.

Um racismo evidente ( e de qualquer modo não limitado à América do Norte) que se manifestou e de muitos modos ainda se manifesta em relação a todos aqueles povos etiquetados como não-brancos e, enquanto tais, considerados inferiores e não civilizados.

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