As bruxas estão soltas!

 

Herdeiras das tradições matriarcais dos tempos em que a principal divindade era a Grande Mãe Terra, as bruxas medievais reaparecem hoje na pele de mulheres comuns.

Texto de Luis Pellegrini

“Chegou a nossa bruxinha!” Foi assim que a dona da casa saudou uma amiga convidada para o jantar. A anfitriã respondeu sorrindo quando perguntei por que chamara a outra daquele modo: “Ela estuda uma porção de bruxarias, tarô, astrologia, e sabe ler as linhas da mão”.

A “bruxinha” era jovem, bonita e elegante. Psicóloga de profissão, era casada e mãe de dois filhos. Quando me brindou com um sorriso cheio de charme, perguntei a meus botões: Então são essas as bruxas de hoje? Se forem, o que fazer com a imagem estereotipada da bruxa tradicional, mulher má, velha e feia, corcunda, verruga na ponta do nariz, a voar nos céus montada em vassoura, ou diante de um caldeirão a cozinhar sapos e asas de morcegos com a intenção de produzir malefícios?

Uma pergunta puxa outras: O que é, afinal, a bruxa? Por que, hoje, chamar de bruxa a mulher que se interessa por ocultismos, adivinhações e magias já não é um insulto e sim, muito mais, um elogio carinhoso? O que mudou, a natureza da bruxa, ou simplesmente a visão que temos dela?

A bruxa, mulher que conhece os segredos das leis mágicas da natureza – tanto a natureza externa, do mundo, quanto a interna, humana – existe provavelmente desde os tempos das cavernas. Seu objetivo fundamental é conquistar um poder de transformação sobre as coisas do mundo, sobre os outros e sobre si mesma. Bruxa, portanto, é mulher de poder.

No decorrer dos milênios, tanto nas civilizações do Ocidente quanto nas do Oriente, essas mulheres de poder desempenharam livremente o seu papel, respeitadas e admiradas pelas pessoas. Eram curandeiras, parteiras, sábias nos usos medicinais das ervas, folhas, raízes, conhecedoras dos mistérios da natureza, da vida e da morte. Eram também sacerdotisas, profetisas, médiuns que funcionavam como elemento de ligação entre os vivos e os mortos, entre os humanos e os deuses.

Claro, havia também homens que exerciam essas funções. Mas eram minoria. Desde sempre, a natureza sensível da mulher foi considerada mais adequada para perceber os segredos da terra e manipular suas forças. No passado, como no presente, as mulheres são as herdeiras das antigas tradições dos tempos matriarcais, pré-cristãos, quando sobre a terra pontificava uma divindade feminina, a Grande Mãe Terra, mais simplesmente chamada A Deusa. Ela dominou a sociedade durante muito tempo, até o advento, há apenas dois ou três mil anos, do ciclo patriarcal, onde a divindade máxima é um deus masculino, feito à imagem e semelhança dos homens. Desde então, tudo se inverteu. Os valores defendidos e ensinados passaram a ser aqueles convencionalmente atribuídos ao princípio masculino – a honra, a valentia, a competitividade, o espírito de conquista. Pouco a pouco, foram sendo esmagados os valores atribuídos ao princípio feminino – a receptividade, a adaptabilidade, a cooperação, o respeito à natureza e suas leis.

No decorrer da era patriarcal, as mulheres foram colocadas num plano muito inferior ao dos homens. Identificadas como causa e objeto do pecado pela tradição judaico-cristã, consideradas instrumentos do diabo para a perdição dos homens, as mulheres perderam quase todas as possibilidades de afirmação.

Na Europa medieval, dominada pela religião patriarcal cristã, cristalizou-se o desprestígio da condição feminina. Todo o poder concentrou-se nas mãos dos homens. Em primeiro lugar vinha o deus masculino; em seguida seus representantes na terra, o papa e o rei, com suas respectivas cortes; depois o senhor feudal; e finalmente o cidadão do sexo masculino. Para as mulheres praticamente nada restava na repartição do poder. Quase escravas dos seus senhores, seus papéis sociais limitavam-se à função de esposa e mãe, ou às profissões que reproduziam na sociedade esses mesmos papéis: enfermeiras, cozinheiras, costureiras, parteiras, domésticas. As que desejavam escapar desse destino podiam entrar para um convento (para se tornar esposas de Cristo), ou mergulhar no difícil caminho da prostituição (esposas de todos os homens).

Mas o desejo de liberdade, quando se instala no coração e na mente de uma mulher, é capaz de remover montanhas. Mesmo naquela situação de asfixia, algumas mulheres se rebelaram contra a camisa-de-força força patriarcal e procuraram escapar dela. Entre essas mulheres estavam as bruxas. Herdeiras –  conscientes ou inconscientes – da antiga tradição libertária dos tempos matriarcais, as bruxas faziam uso dos conhecimentos mágicos oriundos dessa tradição passada de mãe para filha, com o objetivo de conquistar poder. Muitas tornaram-se realmente mulheres de conhecimento e poder, e sua presença logo se destacou no meio da massa de mulheres reprimidas e esmagadas.

O poder patriarcal identificou nessas mulheres um perigo, uma ameaça, e reagiu. Como poderiam aqueles homens – por um lado, eles próprios prisioneiros dos papéis masculinos estereotipados que eram obrigados a representar e, por outro, pelos dogmas de uma igreja que dominava pelo terror – admitir a existência de mulheres mais livres e poderosas (no sentido mágico) do que eles próprios?

A ordem foi acabar com essas mulheres e, na onda terrível de perseguição, até alguns homens foram condenados à morte pelo mesmo “crime”: a bruxaria. Mas, segundo as estatísticas, as mulheres constituíram cerca de 80% das vítimas.

Tribunais da Inquisição eclesiástica surgiram em toda parte nos países europeus e inclusive nas Américas do Norte e do Sul. Calcula-se que cerca de 60 mil mulheres foram queimadas vivas entre os séculos 14 e 18. Um genocídio que, levando-se em conta a exigüidade da população naquela época, pode ser comparado ao massacre dos judeus pelos nazistas.

Oitenta por cento daqueles que a Inquisiçao mandou para a fogueira eram mulheres. Principal acusaçao: prática de bruxaria.

A acusação formal nesses julgamentos sumários era de heresia ou de pacto com o demônio. Mas, na verdade, bastava que o cidadão, principalmente se fosse mulher, se diferenciasse um pouco dos padrões da moral e do senso comum estabelecidos, para ser jogado no braseiro. Joana D’Arc foi queimada porque queria ser guerreira; Giordano Bruno por afirmar que a Terra não era o centro do universo. Os anais da Inquisição estão cheios de relatos inverossímeis para a mentalidade de hoje. Existe, a título de exemplo, a história de uma mulher que não conseguia acordar durante a noite quando o marido a chamava. A infeliz foi parar num tribunal, denunciada pelo próprio marido, que a acusou de, durante o sono, abandonar o corpo em espírito para encontrar-se com o demônio. A mulher foi condenada e morreu na fogueira.

Dessa paranóia masculina nasceu a imagem feia e negativa que até hoje conservamos das bruxas. Mas, no bojo dos recentes movimentos de libertação da mulher e de resgate dos valores do feminino, essa imagem passa por um rápido processo de transformação. Ao lado da eclosão de ciências “femininas”, como a ecologia, estreitamente ligadas às leis e necessidades da terra, existe hoje, em todo o mundo, um enorme interesse pelos conhecimentos e valores essenciais da bruxaria. Claro, uma bruxaria moderna, de linguagem e roupagens renovadas, e não mais conectada a feitiços baratos à base de sapos, morcegos, vassouras e caldeirões. Muitas centenas de livros sobre o tema foram lançados nas últimas décadas, e seus autores apontam para o ressurgir de uma espiritualidade baseada na sacralização da natureza – exatamente o tipo de espiritualidade desde sempre praticado pelas bruxas.

Um outro

Originally posted 2010-10-20 12:15:31.

Comentários

comentários

11 pensou em “As bruxas estão soltas!

  1. Vera Ligia

    Querido Luis… Mais uma vez um texto brilhante e acolhedor. Como disse a Camila Pati, a Clarissa Pinkola Estés é maravilhosa e traduz muito bem esta nossa essência da Loba, da mulher que vem das profundezas da terra. Sou apaixonada por este livro, já li umas 3 vezes, é meu livro de cabeceira. Hoje, após tirar uma carta de um dos meus oráculos e depois de ler seu artigo, decidi que, definitivamente, quero ser esta Bruxa moderna. Um grande beijo

  2. Tereza KAwall

    Viva a mulherada, quantos desafios ainda a serem superados.
    Tentei compartilhar para o facebook, mas apareceu a a foto do post seguinte.
    Um beijo
    Tereza

  3. Camila Pati

    Luis:

    Acabo de ler um livro muito legal e que aborda essa natureza selvagem da mulher~, que arrisco comparar com esse ‘lado bruxa’. ” Mulheres que correm com os lobos”, vc deve conhecer. um livro canal para a libertação feminina e o despertar para essa nossa qualidade. Todas temos dentro de nós a mulher sábia ” La que todo sabe”, como chama a autora do livro. bjs

  4. Clene Salles

    De tudo, algo é certo e deve ser levado a sério! Não sei de onde vem (talvez venha da engenharia – fantástica – hormonal da mulher) a força do pensamento da mulher. O poder mental do feminino é inquestionável!

  5. Luis Pellegrini Autor do post

    Meu caro Icaro, antes de tudo obrigado pelos seus bons comentarios. E agora vc me deixa “com a pulga atrás da orelha”, como se dizia antigamente. Nao sei se o meu texto sobre as bruxinhas modernas está completo ou nao… E estou no momento em Paris. Volto pra SP amanha, e vou verificar no meu computador o arquivo corrrespondente. Se faltar alguma coisa, vou inserir. Esse texto foi escrito há algum tempo, e francamente nao me lembro mais…

  6. Ícaro Greco

    Luis, mais uma vez você vem quebrar tabus, pois eu realmente via no termo “bruxa” algo maléfico, pensei que somente o termo “mago” representasse o sábio (a).
    Só uma pergunta: o texto está incompleto? Pois ele termina com “Um outro”.
    Um grande abraço.

  7. Luis Pellegrini Autor do post

    Querida Marta, gostaria que em você se manifeste cada vez mais a bruxa MARTA LÚCIA! A mais poderosa de todas. Basta ver o que ela conseguiu fazer da sua vida. Beijoca do velho amigo.

  8. Marta Lúcia

    Olha Luis! Definitivamente os seus textos
    tem um que diferenciado. Até mesmo pelos temas abordados.
    Penso que todas nós mulheres temos, UMA BRUXA bem escondidinha.
    Ler esse texto hoje, foi providencial.
    Acabei de falar para uma amiga.
    Está chegando a hora de assumir o meu LADO BRUXA.Chega de ficar atrás de uma mesa,trabalhando com papéis,telefone, enfim.
    Estou aguardando, qual das bruxas vai se manifestar,tarologa,vidente,cartomante,etc… Um abraço
    Marta Lúcia

  9. Diana

    Vivam as bruxas Luis!

    Penso que bruxas somos a maioria de nós mulheres que damos conta de verdadeiras magias para sobreviver diante da violência (que não é mais a da inquisição ) que nos ronda, e buscamos no conhecimento de nós mesmas e de algumas ciências, uma união maior com a nossa mãe Terra, forças e muito amor para transformar senao o mundo, pelo menos a nós mesmas. Abraço.
    Diana

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